COMING UP | Rabo de Peixe
Não há melhor forma de celebrarmos a renovação de Rabo de Peixe para uma segunda temporada senão falar sobre o quão boa foi a primeira parte desta história nacional. Entre ficção e realidade, Rabo de Peixe é mais uma prova de que o mais importante não é a língua, mas sim a história, e por mais que exista uma certa relutância em reconhecer, o que é nacional é mesmo bom.
A beber do mesmo dilema moral que La Casa de Papel, a segunda aventura da ficção portuguesa com o selo da Netflix é um prato cheio de carisma com pouco de erro a apontar. Falamos-te sobre tudo isto na edição desta semana do Coming Up, fica connosco.
Não há melhor inspiração do que a realidade, e talvez tenha sido essa ao grande chave mestra de Rabo de Peixe. O facto de um evento tão absurdo ter uma base de credibilidade porque de facto aconteceu é meio caminho andado para nos deixarmos envolver nesta narrativa e sentirmos proximidade com o que ali se passa.
Para quem já se cruzou alguma vez com a história de Rabo de Peixe, sabemos que o relato de pobreza que ali é desenhado é fiel, ou seja, a realidade está transposta tal qual como é, e a partir dessa fidelidade com o nosso mundo grande parte dos alicerces da história estão garantidos e com destaque mais que positivo. Mas, se a realidade já nos atrai tudo consegue tornar-se ainda melhor quando a parte criativa entre em ação e nos oferece um herói romântico como Eduardo.
Ele é o típico protagonista com o qual conseguimos facilmente envolver-nos e desculpar todos os seus defeitos, logo à partida, é o típico amor à primeira vista que nos leva a ignorar as escolhas erradas que faz, porque, no fundo, se estivéssemos num momento de aflição como a dele seguir o caminho mais fácil também seria uma opção para qualquer um de nós.
O argumento até se poderia ter sustentado apenas no relato de pobreza de uma terra sem oportunidades que se torna pequena demais para um jovem com muitos sonhos, mas foi ainda mais ousado na criação de laços entre nós e o protagonista com a introdução do drama do pai ao qual é impossível ficarmos indiferentes.
Em resumo, a narrativa tem o mérito de nos conseguir envolver de tal maneira com o protagonista que se torna difícil deixarmos a história a meio na esperança de vermos um personagem com o qual nos importamos dar-se bem.
O uso da realidade e a história humilde e dramática de Eduardo são os pontapés de saída perfeitos para embarcarmos nesta aventura, e são dois pontos importantíssimos para garantirem o nosso interesse na série mesmo durante os dois episódios iniciais cujo ritmo não é tão acelerado quanto o normal para uma história feita para o streaming.
Não é algo que atrapalhe a experiência, até porque numa história que se baseia em factos verídicos os detalhes são cruciais para passar o sentido de realidade, porém, essa entrada num ritmo mais lento torna o arranque de Rabo de Peixe em algo próximo ao que sentimos quando vamos dar um mergulho nas águas portuguesas: Primeiro sentimos um frio gelado quando molhamos os pés e, depois, quando nos habituamos à temperatura conseguimos ir por ali a fora sem vontade de voltarmos a sair.
Ultrapassado o primeiro impacto e já com ligações bem estabelecidas não só com Eduardo, mas também com o restante “gangue” Percebemos o quão fascinante é o que está ali a acontecer. O grande destaque, mais uma vez, vai para a criatividade com o enredo a criar vários caminhos paralelos além do óbvio.
Temos, logo à partida, um vilão definido com os verdadeiros donos da droga, mas é Arruda quem faz a história mexer. Além da atuação digna de prémio de Albano Jerónimo, é impossível ignorarmos a riqueza do personagem, que não é colocado às três pancadas como o mau da fita. Ele tem nuances, ele tem falhas e é obviamente um homem sem grandes princípios, mas é humano, não há ali nada que o torne num vilão só porque sim. É novamente a cartada da credibilidade que volta a tornar a história tão viciante.
E já que estendemos o leque, avancemos para os restantes elementos do grupo principal. À semelhança de Eduardo, e como qualquer jovem adulto, o grupo é composto por jovens cheios de sonhos, e com vontade de vencerem na vida e provarem o seu valor. Contudo, tal como na vida real, nada corre exatamente como planeado.
Rafael é o parceiro ideal, cheio de incertezas e inseguranças depois de ter cheirado o sucesso e ter caído do pedestal, e acaba por morrer cedo demais. É o típico complexo de Berlín, será que se soubessem antecipadamente que a série seria renovada se teriam livrado tão rapidamente do personagem?
Seguimos para Sílvia. Numa primeira perspetiva, ela é uma rapariga complexa, cheia de traumas e à qual faltam regras ou terapia para resolver as suas frustrações, mas à medida que conhecemos a essência de Sílvia, percebemos que ela é aquilo que à época se poderia classificar como feminista. Uma rapariga que luta pela vida e por se afirmar com os mesmos direitos que os homens que estão à sua volta.
Sem uma grande noção de amor porque nunca o teve realmente, Sílvia é a definição da independência enquanto busca por um porto de seguro, e vive nessa dicotomia interna ao longo de toda a temporada. Na verdade, quando percebemos de uma forma mais aprofundada o que lhe vai na cabeça não conseguimos deixar de ter por ela a mesma empatia que temos por Eduardo.
Por último, mas não menos importante, temos Carlinhos. Antes mesmo de falarmos sobre ele temos de dar os parabéns ao texto pela abordagem que teve com a orientação sexual do personagem. Sem deixar de parte a gíria ofensiva ou a fidelidade com a forma como um homossexual era tratado naquela altura, conseguiu apresentar uma personagem com dignidade, sem resvalar no ridículo e sem fazer dele um coitadinho, um ângulo pouco visto quando o assunto é a homossexualidade.
À parte desse elogio, vale ressaltar que Carlinhos é, provavelmente, a voz do bom senso dentro do grupo e aquele que mais luta pela justiça. É o típico “bom rapaz”, a quem interessa mais a felicidade dos outros que a sua. A par dessa análise sobre a personalidade dele, ele vem provar, de novo, que a história (mesmo que ótima) ganha ainda mais pela empatia que criamos com o núcleo central.
A qualidade da série, de fio a pavio, foi carimbada com a segunda temporada, e nada mais que justo depois de um encerramento com tantas possibilidades em aberto. Naquele final a história da droga já passou para segundo plano e o nosso interesse maior é garantir que todos os objetivos e sonhos do grupo sejam cumpridos.
Estabelecendo um paralelo inevitável com La Casa de Papel, onde vemos uma série de pessoas com escolhas erradas na vida a lutarem de uma forma pouco ortodoxa pelos seus objetivos, e nós público, a torcermos por eles sem qualquer peso na consciência por estarmos a defender algo que moralmente é altamente condenável.
É certo que as duas narrativas se distanciam em larga escala pela gravidade dos atos cometidos, mas, ainda assim, ambas comungam de um ponto importante: A empatia. E vamos a teorias sobre o futuro.
Quando deixamos Eduardo ele está a caminho da América com Carlinhos, a achar que está a viver o início do sonho, mas tal como o famoso meme do YouTube, o sonho não correrá, certamente, como o esperado e pode até ter consequências mais sérias, visto que o barco onde estão dirige-se para a América em pleno dia 11 de setembro de 2001.
No regresso inevitável, Eduardo vai provar que o ditado que diz que podemos fugir dos problemas, mas eles apanham-nos sempre não podia estar mais correto, e vem com um plus one. Além de ter de fugir dos barões da droga e da polícia, Eduardo vai ter de fazer tudo isso enquanto se prepara para ser pai, numa realidade onde terá de recuperar a confiança de Sílvia e onde Sílvia terá de recuperar a confiança em Eduardo.
Há muitas nuances e questões no caminho, enquanto Carlinhos regressa sem o seu sonho cumprido. Será que ainda há espaço para absolvição? Terá o susto do padre com a máfia tê-lo feito repensar a sua vocação? Muitas questões que, felizmente, terão resposta numa renovação que faz história no audiovisual nacional e que tem cheiro de um pequeno passo na Lua para a conquista de um novo universo para a ficção portuguesa.
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