Contos Bastardos • "Águas de março"
Águas de março
Chove como se todas as nuvens carregadas se tivessem reunido em concílio para envergonhar o conceito de chover. Não é borraça fininha, é chuvada bíblica que cheira a terra e ao fim do mundo.
Vou encarneirado no trânsito quando vejo, ao longe na ponte pedonal, algo estranho. Entre vaivém de pára-brisas tiro os óculos e volto a pô-los, numa tentativa de fintar a miopia. Não resulta - é preciso que a fila avance para ganhar clareza.
Distingo duas pernas que pendem do lado oposto da ponte, como se alguém de membros longos e elásticos que escorrem com a chuva andasse de baloiço por cima da via-rápida.
A nitidez aumenta. Percebo que não é um equilibrista pernilongo nem um manequim de loja ali metido para pregar partidas. É um homem, fato-e-gravata, pendurado pelo pescoço na borda metálica. Balança à mercê do temporal, suspenso acima de todos nós. Um fantoche inerte, o cume do desespero escalado e o salto para dele escapar.
Na floresta tropical urbana, a escassos metros de funcionários 2 minutos atrasados para empregos, um corpo sem vida, sem pressa nem obrigações diárias- já não pica o ponto, já não atrapalha o trânsito, está nas calmas e sem pudor até que a polícia decida desafiar a chuva e apareça para dar privacidade ao cavalheiro que flutua.
O céu chora. Lembro-me do avô e da macieira a que sobe para se sentir mais próximo da avó morta. É a árvore mais alta da fazenda. Quanto mais alto, mais perto do divino. Na cidade não há macieiras frondosas - as pontes pedonais têm de servir para preencher a ilusão.
Quando o cessar-água acontece já não há sinais do homem na ponte. Quem viu julga ter imaginado - eu prefiro o romance de sonhar que foi regado até subir ao céu, à nova vida que procurava.
Vou encarneirado no trânsito quando vejo, ao longe na ponte pedonal, algo estranho. Entre vaivém de pára-brisas tiro os óculos e volto a pô-los, numa tentativa de fintar a miopia. Não resulta - é preciso que a fila avance para ganhar clareza.
Distingo duas pernas que pendem do lado oposto da ponte, como se alguém de membros longos e elásticos que escorrem com a chuva andasse de baloiço por cima da via-rápida.
A nitidez aumenta. Percebo que não é um equilibrista pernilongo nem um manequim de loja ali metido para pregar partidas. É um homem, fato-e-gravata, pendurado pelo pescoço na borda metálica. Balança à mercê do temporal, suspenso acima de todos nós. Um fantoche inerte, o cume do desespero escalado e o salto para dele escapar.
Na floresta tropical urbana, a escassos metros de funcionários 2 minutos atrasados para empregos, um corpo sem vida, sem pressa nem obrigações diárias- já não pica o ponto, já não atrapalha o trânsito, está nas calmas e sem pudor até que a polícia decida desafiar a chuva e apareça para dar privacidade ao cavalheiro que flutua.
O céu chora. Lembro-me do avô e da macieira a que sobe para se sentir mais próximo da avó morta. É a árvore mais alta da fazenda. Quanto mais alto, mais perto do divino. Na cidade não há macieiras frondosas - as pontes pedonais têm de servir para preencher a ilusão.
Quando o cessar-água acontece já não há sinais do homem na ponte. Quem viu julga ter imaginado - eu prefiro o romance de sonhar que foi regado até subir ao céu, à nova vida que procurava.
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente
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