Crónica • "Uma bifana para a mesa dos pequeninos, por favor!"
Imagem: René Magritte | Man Seated at Table (1960) | |
Uma bifana para a mesa dos pequeninos, por favor!
Uma crónica de Luís G. Rodrigues
Patrícia Mamona, após ter alcançado a medalha de prata no triplo salto feminino nos Jogos Olímpicos de Tóquio – cujo salto vitorioso lhe deu o recorde nacional –, num ato patriótico e de agradecimento disse, numa breve entrevista pós-prova, em relação a Portugal, que “somos pequenos, mas somos grandes”. E às vezes até é o caso, durante uns breves dias, quando, em nome de Portugal, alguém é bem-sucedido; e às vezes nem aí.
Como orgulhosos que são, os portugueses e portuguesas tendem a ver o seu país com um carinho nacionalista que, de quando em quando, tem um cheirinho a pré-1974, uma fragância reservada com cheiro a ideais de supremacia cultural, ideal para quem só gosta de quem é igual a si.
Recentemente, os resquícios de todo um percurso escolar que adota uma narrativa branqueadora de todos os males que o Império Português trouxe ao mundo e que por essa razão faz com que, desde pequenos, os portugueses e portuguesas – ou pelo menos uma parte significativa – acreditem na grandiosidade do passado português, vieram ao de cima por culpa de uma bifana. É verdade. Não foi o Padrão dos Descobrimentos, não foi o comentário racista do deputado português que usa o perfume pré-1974, mas sim o Gordon Ramsay, chef americano reconhecido mundialmente pela forma agressivamente cómica como trata concorrentes de programas de culinária – sim, e também pela habilidade que tem na cozinha e pelas estrelas Michelin, blá-blá-blá – e a sua reinvenção da bifana portuguesa.
Ora, a bifana do Ramsay, na minha opinião de pessoa que aprecia uma bela febra de porco fininha metida em pão quentinho, está com um aspeto delicioso. É certo que, provavelmente, custará mais do que aqueles dois euros que o Sr. Zé cobra na Adega, mas diria que vale a pena. Pelos vistos, sou dos poucos a pensar assim em Portugal.
O Twitter português, de resto entendido na história da gastronomia portuguesa ao longo dos séculos, revoltou-se com o produto final do chef americano.
O JN fez um favor a todos os seus leitores e reuniu alguns tweets que apanham bem a atmosfera sentida na rede social: “O deputado do PSD, Duarte Marques, reagiu à publicação e comentou: "Parece bastante bom, mas não é uma bifana. Vá a Vendas Novas e prove uma verdadeira". Também o youtuber Mr. Remedy, revoltado com esta versão, respondeu ao chefe britânico: "Outra vez, Gordon?! Já que estás em Portugal dá um saltinho até Vendas Novas. Tens 5 ou mais estabelecimentos diferentes que se especializam em bifana e nenhum deles serve isto. Se comia? Sem dúvida! Se levavas um carolo por cada vez que lhe chamasses bifana? Também". "Nunca pensei dizer isto, mas no que toca a bifanas a tasca fá-las melhor que o Gordon Ramsay", lê-se num dos comentários dos utilizadores à publicação feita pelo chefe através do Twitter".
Eu não sou de intrigas, caro leitor, - sou, sou – mas quero acreditar, então, que todos os portugueses que partilham desta opinião generalizada que a onda cibernética está a perpassar, opinião essa que defende que uma bifana só se come em Vendas Novas, não comem sushi em Portugal, que não frequentam restaurantes chineses em território português e que não se atrevem – malditos! – a comer um prato tipicamente indiano naquele restaurante da sua rua. Vou mais longe: isto de um português falar inglês também está mal, porque falar inglês em condições só em Londres!
A pequenez está nestes momentos. Tivemos oportunidade de sermos maiores, uma vez mais, para connosco mesmos. O Ramsay vir a Portugal, gravar cá um episódio da sua série e fazer um prato típico devia ser motivo de orgulho, ainda para mais quando o raio da bifana está com um aspeto fenomenal. Escolhemos ser paternalistas e chicos-espertos.
O caminho faz-se caminhando, porém, por vezes, em silêncio também, para que se possa refletir. A bifana não tem culpa nenhuma, a formação escolar e os seus conteúdos programáticos dados em Portugal sim. Fazem-nos acreditar que somos os melhores e sabemos tudo: não é o caso; estamos longe disso, mas damos um passo em frente quando aceitarmos a nossa história como ela sucedeu, e não como a escrevemos.
Abraço ao Ramsay, que não fala português, mas que colocou o seu talento ao serviço da nossa comida e a levou até aos seus milhões e milhões de seguidores.
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