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Duplo Clique | "Cantar não é brincadeira"

 
Pequenos grandes talentos. Com a meninice na voz e os sonhos em altos voos, nove mil crianças tentaram o casting do “The Voice Kids”, o programa que elege o futuro artista da música portuguesa, aos domingos à noite na RTP. A pauta musical do grande entretenimento continua a soar monocórdica, mas ninguém resiste à doçura das crianças que sobem ao palco – e que assim vão povoando a televisão, afirmando-se como as gerações que afinarão os acordes do nosso país.

O canal público continua a apostar no filão dos talent-shows, contrapondo a sua oferta a uma programação requentada na SIC e a escaldar na TVI. Ao que parece, o público deixa-se levar. Um milhão e quarenta mil pessoas marcaram a audiência da estreia e garantiram o segundo programa mais visto do dia 28 de setembro, cifras que decerto contentam a estação, cada vez mais próxima do público com este tipo de programas.

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Na verdade, “The Voice Kids” poderia não ter nada a acrescentar aos já produzidos concursos musicais para crianças, recordando que nos últimos anos a TVI martelou na mesma tecla com “Uma Canção para Ti”, “Canta Comigo” e “A Tua Cara Não Me é Estranha Kids”. “A Voz de Portugal”, porém, acrescenta lusitanidade. Pelo menos, os jurados. Como descrever um painel tão eclético e consensual como o da RTP? Anselmo Ralph, já residente, não gira a cadeira sozinho: Raquel Tavares sente o Fado e Daniela Mercury o axé. Os três cantores internacionais partilham boa disposição, empatia e elegância com a plateia, cantando a beleza da Língua Portuguesa com sotaques interculturais. Por outro lado, tendo em conta o alinhamento deste género de programas, a presença dos apresentadores é pouco vibrante. Mariana Monteiro e Vasco Palmeirim surgem irrepreensíveis e serenos, uma dupla um pouco desmaiada, mas que sabe relacionar-se com os miúdos.

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Sensibilidade, bom senso e afetos. Os inocentes herdeiros precisam de sentir-se seguros e estimulados pelos seus pais, amigos e mentores na sua aventura televisiva. Por isso, não há margem para comentários muito assertivos ou críticos, sabendo-se bem que nem o ego e orgulho dos adultos são inabaláveis face às contrariedades do mundo do espetáculo. Implicitamente, a preocupação existe. Os jurados desfazem-se em elogios rasgados e em brincadeiras, proporcionando um ambiente descontraído aos concorrentes. Ainda assim, fazem valer-se do seu estatuto (por vezes abusivamente), persuadindo as crianças a escolherem-nos como mentores (uma pressão psicológica que a partir dos sete anos já se dispensava). De resto, a pureza de espírito parece revestir a emissão do canal dos bons costumes, exceção feita ao momento em que uma menina, de apenas 8 anos, por pouco não interpretou a coreografia lasciva do “Show das Poderosas”, da cantora brasileira Anitta. Fica igualmente provado que o reconhecimento digno de uma pessoa se conquista pelo seu caráter e virtudes e não por expor as curvas (as do corpo, não as da voz) a uma cultura de voyeurismo.

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“The Voice Kids” não é um programa em miniatura. A realização dinâmica, o grafismo moderno e a banda-sonora assim o confirmam (mau grado a penumbra em que a banda está mergulhada). É a oportunidade, porventura única e memorável, de dezenas de crianças colocarem à prova a sua experiência e convicções na área da Música. Algumas serão reencaminhadas para as festas de Natal da escola, enquanto outras escalam os ‘Everestes’ das oitavas. Cabe aos pais retemperar o fascínio pelo súbito sucesso, endereçando a todos o alerta de que a Música não é um emprego vitalício nem sustentável em Portugal. Porque ser artista é uma brincadeira de gente crescida.

“The Voice Kids”, para ver aos domingos à noite, na RTP.
Duplo Clique - 21ª Edição
Uma crónica de André Rosa