Header Ads

Dia Mundial do Livro: "2 russos, 2 americanos e um franco-argelino entram num bar"

Foto: D.R.

2 russos, 2 americanos e um franco-argelino: não é a Guerra fria, são 5 sugestões de leitura para este Dia Mundial do Livro, por Sónia Costa

Em tempos de pandemia, os ecrãs e as janelas são o nosso meio de transporte e o nosso destino final até paragens que, por agora, não podemos apreciar com recurso a todos os sentidos. As páginas a carregar são as escadas para o metro, o comando da televisão é o elevador até à sala de aula, o computador a ligar é a entrada no avião. 

As paisagens ainda cá estão, o mundo inteiro também - tal como os nossos olhos, pés, mãos. Chegam-nos dos filmes que temos visto (a que países já viajaram? Talvez tenham ido tomar o pequeno-almoço a Paris ou aproveitado um final de noite em Chicago. Ou arriscaram ir até outro planeta? Eu ontem estive na Coreia e não foi uma má experiência) das séries que aproveitamos para pôr em dia (e, assim de repente, uma máquina do tempo: acordei em 1990 em Bel-Air), dos livros que finalmente tiramos da estante (se tivessem de escolher, em que distopia viviam? Já visitei várias durante esta quarentena e uma resposta é certa: esta, em que estamos, pode afinal não ser a pior).

Depois desta introdução sem grande sentido, deixo uma lista de cinco livros que, por algum motivo, sinto que mudaram a minha vida. Não me gritaram para tomar uma certa decisão nem me puxaram pela orelha para virar à direita em vez da esquerda. Não me empurraram para uma sala de aula nem para uma secretária em concreto. Mas todos os livros que li também fizeram de mim, direta ou indiretamente, quem eu sou. Criaram caminhos que eu não sabia possíveis, apresentaram-me teorias, ideias, religiões, pessoas, mundos. 

Espero que gostem das recomendações que deixo - e que elas vos ajudem, de alguma forma, a conhecer aquele que melhor podem conhecer neste momento: vocês mesmos.
Crime e Castigo, de Dostoievski  
O livro que decidi ler durante o estado de emergência nacional decretado devido ao covid19. O sentido de oportunidade é subjetivo: talvez seja um momento mais oportuno para ler romances leves, primaveris, otimistas, que nos transportem para qualquer outro local que não os bairros degradados de uma São Petersburgo gelada e imunda. Ainda assim, foi também quando tive mais tempo (ou disponibilidade, que não são sinónimos) e coragem de pegar neste livro. 
Ródia matou: é certo. Sónia era prostituta para alimentar a família que não escolheu - obrigada, Dostoievski, por traçares um destino tão luminoso a esta minha homónima - mas trouxe-lhe uma possibilidade de redenção. Agora questionem-se, se nunca o fizeram: Qual é o maior castigo? O que a autoridade e a lei nos impõe? A prisão, a tortura? Ou a nossa consciência, os nossos remorsos, as nossas memórias? A nossa auto-comiseração, o nosso próprio julgamento ao espelho - ou refletido num rio sujo algures na Rússia?
Ródia tem mais possibilidades de vencer no jogo do gato e do rato com a polícia ou de sair vivo da perseguição infernal da sua voz da consciência? 
A única questão a que vos posso responder sem spoilar o clássico russo é: sim, Rodion, Ródia, Romanovitch e Raskolnikov são tudo nomes que se referem ao mesmo protagonista. Ao longo do livro fica menos confuso, mas esta mania dos russos de se tratarem todos por alcunhas diferentes pode causar estranheza e confusão. Afinal não somos só nós que somos Maria no trabalho, Mary prás amigas, Mimi para a avó e Marilu para o tio afastado. 
O coronavírus apresentou-me um dos livros da minha vida, é certo. Mas não é por isso que o vou romantizar.
A morte de Ivan Ilitch, de Tólstoi

Aviso: vão sentir a porra da dor do homem. Ensurdecedoramente muda. Sabem aquelas histórias das pessoas amputadas que continuam a sentir dor no braço que já não têm? Vocês vão ter o rim do Ivan. Ai vão, vos garanto. E vai ser um rim mutante, que vai crescendo e se vai degradando a uma velocidade de cruzeiro. E não prometo que este orgão parasita vos abandone logo após terminarem de ler. Pelo sim pelo não, bebam muita água.

Tólstoi leva-nos lá: ao leito de morte, mesmo à beirinha da cama, de alguém com tanta certeza de que viveu bem – mas há regras para “viver bem”? Absolutamente inesquecível, a melhor reflexão sobre a morte que já li.


O Estrangeiro, de Albert Camus

Vamos lá com calma, então mas a mãe do fulano morre e nem uma lágrima ele verte? E afinal gosta ou não da miúda “por amor”? E porque raio foi matar aquele árabe na praia? E com tantos tiros?! Eu também já fui encadeada, principalmente a conduzir, mas não foi por isso que saquei de um revólver e disparei contra o banana que não se lembrou de desligar os máximos… Nossa, Mersault, que apatia, que frieza.

Este pequeno romance do absurdo é uma reflexão sobre o existencialismo e a inevitabilidade das máscaras sociais. Um verdadeiro tratado da indiferença.

Ratos e Homens, de Steinbeck
A história de dois companheiros – George, um pequenote inteligente, e Lennie, um bebé gigante com a força de três homens – que partilham um sonho e uma amizade incomparável na história da literatura. Reflexões tão simples mas soberbas sobre o valor da vida humana – tem uma passagem genial sobre a morte de um cão –, as desigualdades de género e o racismo.

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
"There must be something in books, something we can’t imagine, to make a woman stay in a burning house; there must be something there. You don’t stay for nothing."

No dia em que o abri e avancei 20 páginas, Pedrogão Grande começava a arder. Atirei-o para o lado, perturbaram-me demasiado as descrições romantizadas das chamas, os bombeiros que ateavam fogos em vez de os apagarem - e os nossos aqui sem mãos a medir.
Voltei a pô-lo na estante. Ficou por lá, desde então. 
Na tarde de 15 de outubro do mesmo ano, avancei até mais de meio - e o resto, infelizmente, já sabem.  O fogo voltou a não dar tréguas e a provar que um mal nunca vem só.
Nesse domingo maldito, fechei-o numa gaveta e equacionei desistir de vez da leitura - eu nem sou supersticiosa mas todo o cuidado era pouco. Acabei de uma vez com ele enquanto chovia torrencialmente, já meados de dezembro.
Fahrenheit 451 é assustador e genial, o verdadeiro inferno dos amantes de livros. Recomendo a todos que o leiam. Mas façam-no, por favor, num dia muito frio de inverno. E sem a lareira acesa.

2 russos, 2 americanos e um franco-argelino entram num bar
por Sónia Costa