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COMING UP | The Last of Us

Ainda estamos em março, mas The Last of Us já conquistou, destacadamente, o título de melhor série do ano. Será difícil encontrarmos um projeto que reúna a mesma minúcia de diálogos, a mesma química entre o elenco e um cuidado tão extremo com o pormenor. The Last of Us é um projeto de detalhes, uma série de ação apocalíptica onde a humanidade e a leitura que faz sobre ela são os ingredientes principais. 

Com uma construção cinematográfica melhor que muitos filmes de culto, a aposta da HBO Max é a prova de como ainda é possível quebrarem-se nichos e sentar à mesma mesa pessoas com gostos diferentes para comentarem o mesmo projeto de ficção. 

É uma obra, no verdadeiro sentido da palavra, onde tudo é construído e fundado usando o carinho como cimento. Falamos sobre o resultado fascinante desta demanda na edição desta semana do Coming Up. Fica connosco, esta é uma daquelas séries que vale a pena ser comentada.

Quem nunca jogou o jogo original vai sentir falta de contexto? É algo necessário?

Tal como em qualquer outro projeto que tenha um material base a servir de contraparte, os fãs do jogo têm pelo caminho pequenos “mimos”, easter eggs e, obviamente, uma experiência ainda melhor. 


Contudo, para quem é leigo na história de The Last of Us, a série encarrega-se de nos apresentar a este mundo e de nos fazer sentir parte da jornada. O contexto é dado como se fossemos espectadores totalmente novos no universo de The Last of Us, e o trabalho de empatia com o público é feito em cima do argumento da série, sem dependências externas para quem assiste. 


Na maioria do tempo a série segue o rumo do jogo, mantendo-se maioritariamente fiel ao storytelling, porém, a forma como a série trabalha a estrutura pré-existe é soberba. Existe o cuidado de fazer cada diálogo ainda mais impactante, de tornar as cenas ainda mais sensíveis e próximas. 


O grosso da história do jogo torna-se aqui um manual para os caminhos dos personagens, para que depois os autores se encarreguem de acentuar o lado humano que já têm no jogo. E nessa transição do jogo para a série a atuação de Pedro Pascal e Bella Ramsey é exatamente o que faltava para que um bom texto se tornasse ainda melhor. A cumplicidade dos dois é destrutiva, e só melhora com o avançar da temporada. 


Mesmo na sua postura mais fechada, Pascal entrega tudo com o seu Joel, e o último episódio é uma prova viva disso. A raiva, a paixão, nós conseguimos entender cada emoção só de olharmos para ele. A proximidade com Ellie no momento da girafa ou quando a tenta fazer rir depois de tudo o que passaram são apenas dois dos momentos que nos aconchegam o coração e nos fazem mergulhar neste universo. 


A dupla é a personificação de magnetismo, que nos atrai para dentro daquela história fazendo-nos sentir que o tempo do episódio voa. Mesmo nos capítulos mais longos.


 

É uma jornada de herói? 

Tem alguns pontos comuns das jornadas de herói clássicas, mas a série encarrega-se de desmistificar a ideia de que tudo se divide na dicotomia entre o bem e o mal. The Last of Us é sobre humanidade, e não há nada de mais humano senão a capacidade de errar. 


Tanto Joel quanto Ellie têm momentos em que tomam atitudes questionáveis, mas mesmo nesses momentos a série entrega-nos alguma moral da história, esforçando-se para mostrar que o ser humano é, por defeito, egoísta, amante de trivialidades, mas, também, afetuoso e companheiro. E todas estas características são mostradas cuidadosamente na série. 


Estamos perante uma realidade onde o mundo está por um fio, onde todos lutam pela sobrevivência, e nessa situação limite ninguém pode ousar em atirar pedras. A proximidade com a pandemia real da COVID-19 só ajudou a que o argumento se tornasse ainda mais credível. Por mais que estejamos a falar de um quase apocalipse zombie, se esmiuçarmos tudo o que a série retrata encontramos paralelos assustadores entre a ficção e a realidade, sobre o egoísmo e o pensamento crítico absurdo da população egocêntrica, assim como a necessidade de uma grande parte da população se juntar a posicionamentos radicais para calarem as vozes da sua própria consciência. 


A análise sociológica da série é assustadoramente realista, ao ponto da parte fantasiosa se tornar um acessório para aquilo que nos querem contar. O retrato está ali, entregue, de forma nua e crua para quem o quiser entender. E mesmo para os mais céticos que ainda têm alguma resistência em se entregar a uma história com uma visão um tanto ou quanto sobrenatural da realidade, a trama encarrega-se de entregar justificações científicas plausíveis para que não pareça uma escolha banal. 


Voltamos a bater na mesma tecla, mas o ingrediente principal do sucesso de The Last of Us prende-se com os detalhes da sua construção, e só alguém muito envolvido com a sua história conseguiria ter tantos pormenores em consideração.

 

É uma parábola da realidade?

The Last of Us leva os seus personagens ao limite, colocando-os em posições controversas, mas, de uma forma geral coloca Joel e Ellie na posição de peões num jogo de xadrez onde a derrota está praticamente garantida. A função deles é desafiar as estatísticas. E no fundo, é aquilo que todos os dias todos nós tentamos fazer no nosso dia a dia, com o pequeno grande detalhe de que nos nossos casos não estamos perante um jogo de vida ou morte. 


O último episódio, que é um dos grandes highlights da série, mesmo com o seu fecho anti climático, coloca em prática aquele jogo que tantas vezes já fizemos na escola. Estamos perante uma ameaça, e para salvarmos todos temos de sacrificar um, qual é a coisa certa a fazer? A escolha é polémica, sobretudo para nós que vivemos com uma ideia enraizada do cristianismo que nos diz que tudo é aceitável para o bem maior, mas se colocarmos a questão numa outra perspetiva, de que lado estamos a ser mais egoístas? Naquele em que defendemos o sacrifício de Ellie para a cura de todos ou naquele em que sacrificamos uma vida apenas para garantir que todas as outras possam prosperar? A escolha é impossível. 


É fácil argumentar para ambos, mas a posição da pessoa que escolhe é simplesmente aterradora. A série constrói isso em frente aos nossos olhos. 


Na primeira vez que nos cruzamos com Joel sentimos a dor dele, depois passamos por um processo em que o personagem está preste a saltar de um precipício hipotético até que dá um passo atrás e percebe que há esperança, a seguir entendemos que o destino voltou a fazer das suas e Ellie é a cura para uma dor que nunca se ultrapassa, para no final de tudo isto vermos Joel a ser novamente confrontado com uma perda iminente sem que ele, mais uma vez, possa impedi-lo. É revoltante, é angustiante, e por isso conseguimos entender o caminho que o leva ao comportamento bruto do último episódio. 


Ainda assim, vale ressaltar, que a série também usa a influência da perspetiva para nos levar a defender a sua ideia do que é o “bem”. Se nos pusermos nos sapatos de Katherine, ela agiu com rancor e por vingança contra Henry, e nos condenamos essa atitude, catalogámo-la como vilã, mas Joel também agiu com raiva e rancor contra todos os que lhe levaram Ellie e nós fomos condescendentes. 


É tudo uma questão de perspetiva, o que reforça a ideia de que estamos perante uma parábola sobre a vida, porque seja qual for a situação, a perspetiva dará sempre uma interpretação diferente da realidade, seja ela certa ou errada. 



A série é consistente? A segunda temporada não é um esticar de corda?

O hype gerado em torno de The Last of Us é fruto do mérito da série em garantir que a cada novo episódio nos fazia sentir alguma faísca. 


O primeiro episódio é uma introdução e por isso talvez não seja o maior chamariz para tudo o que The Last of Us representa. Mas a partir daí a fasquia vai subindo cada vez mais. 


O episódio três, pelo seu teor mais intimista é uma das coisas mais bonitas que foram feitas na história recente do mundo do streaming, carregado de bom gosto, sem se tornar piegas, e com a clareza de espírito de mostrar que o amor e as suas diferentes orientações devem se barradas por qualquer tipo de género de ficção. 


O quinto e sexto capítulos são um misto de empatia e nó na garganta, são episódios duros de se assistir, e trazem dois personagens secundários a serem tratados com a mesma profundidade que um protagonista arrebatando-nos no pouco tempo de ecrã que têm, é absurdo, e mais uma vez mostra o cuidado nos diálogos e na preparação detalhada de cada cena que só eleva a história a um patamar ainda maior. 


O nono capitulo talvez seja aquele que mais se aproxima de uma construção de episódio clássica do mundo das séries, porém, mesmo dentro do clássico, a série consegue contornar o clichê e trazer-nos algo de novo. O único ponto negativo de toda a temporada acontece, apesar de tudo, neste episódio, quando Joel passa da quase morte para uma figura com uma destreza de movimentos acima da média. Foi o único momento em que sentimos que os autores se converteram à religião do Deus Ex Machina, e abraçaram o lado mais fantasioso da ficção. Tudo se desculpa em prol do reencontro final que carimba de uma vez o afeto entre Joel e Ellie. 


O último episódio tem um final anti climático quase na mesma medida que o de House of The Dragon, mas é, ainda assim, um dos episódios com mais criatividade, com mais sumo, é o entregar completo à densidade e ao drama ao mesmo tempo que nos dá automaticamente o pontapé de saída para a segunda temporada. 


Aqui a continuação impõem-se, este universo é demasiado rico para viver apenas por nove capítulos. É obvio que teremos momentos de revolta de Ellie depois da mentira de Joel, mas se pudéssemos apostar, o grande plot que aí vem será uma busca desenfreada por Ellie. 


Afinal de contas, por mais que Joel tenha acabado com a vida de todos os que estavam no hospital, é-nos difícil acreditar que nesse meio tempo ninguém tenha falado demais. A perseguição vem aí, e a ação está garantida na season dois. Nós temos encontro marcado, de certeza!