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Contos Bastardos • "São precisos dois para dançar o tango"


São precisos dois para dançar o tango

Sapatos há muitos” é das frases que mais ouvimos quando trabalhamos numa sapataria. Ah, o saudosismo dos clássicos aplicado à arte do calçado!

Botins a entrar e sair no outono, galochas no inverno, sapatilhas para meia estação, pantufas, sabrinas, sapatinhos de conjugar com cinto, botas da tropa, saltos-altos e plataformas. As tipologias estão mais sofisticadas e as alíneas aumentaram em paralelo ao preço dos combustíveis e às prescrições de calmantes. Não basta escolher pele ou sintético, cosido ou colado: há hoje uma panóplia de variações, só anda descalço quem quer e quem não tem medo de pisar um vidro dos próprios telhados.

Deste modelo tem 42?
Só o que está exposto, são os últimos pares.

A palavra imperativa para quem anda na indústria: par.
Um casal não se deve anular na individualidade - cada elemento tem valor e uma palavra a dizer na educação dos filhos, no restaurante para jantar, no lado da cama.
O sapato não: na vida de solteiro, divorciado ou viúvo, entra numa espiral de inutilidade e auto-comiseração de quem não é nada, nunca será nada, não pode querer ser nada nem ter em si os calcanhares do mundo. Conheci alguns assim - perdem brilho, ficam frouxos, descolam-se das solas, até as palmilhas abandonam o barco.

No armazém temos estantes infinitas com modelos de gala, corta-mato e montanha, mata-baratas-no-canto-da-sala, bailarinos de jive, jogadores de bowling, caçadores de caranguejos. Mas há um especial, que nunca me atrevi a deitar fora mesmo após anos a ganhar pó na prateleira: um sapato direito sozinho, imponente e dono do seu verniz. Está cá desde o primeiro dia. Gosto de pensar nele como o avô de todos - e é normal que os avós já sejam coxos. Deu o passo mais difícil: o primeiro. Os que foram aparecendo têm a responsabilidade de lhe seguir as pisadas.

Texto: Sónia Costa 
Ilustração: Filipa Contente