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Caçar com Gato • Crónica 9 - "Como correu o luto nacional?"

Como correu o luto nacional?
de Luís G. Rodrigues

No passado dia 8 de Setembro, a rainha Isabel II morreu. Uma boa parte dos britânicos derramou tantas lágrimas que podia ajudar a combater a seca no mundo; a outra parte, ainda que em menor número – falo, principalmente dos irlandeses e escoceses – fez uma festa que colocaria o Woodstock a um canto.

Já os noticiários, apesar de menos emotivos (como aliás deve ser), foram unânimes: trocaram as lágrimas pelas intermináveis sessões dedicadas à monarca e a indumentária preta foi sinal de muito respeito e tristeza. No mundo, não se viu mais nada e em Portugal, país provinciano, também não.

A nossa República, avessa e contra qualquer ideal monárquico, subjugou-se ao achismo tomado pelo mundo – a monarquia britânica é incrível.
Uma República pós-Estado Novo contra elites de sangue, a favor da auto-determinação dos povos e anti-colonial como é a de Portugal, não pode fazer luto nacional por nenhum monarca – seja muito bom ou muito mau.
Pode sim – e deve! – fazer luto por aqueles que, verdadeiramente, contribuíram para o desenvolvimento, progresso e grandeza de Portugal.
É, por essa razão, importante relembrar outros lutos nacionais e colocá-los em plano de comparação com o da Rainha. Começo com uma lista curiosa de nomes.
Teófilo Braga, Álvaro Cunhal, José Saramago, Manoel de Oliveira, António Arnaut, Agustina Bessa-Luís, Diogo Freitas do Amaral, Eduardo Lourenço, Paula Rego. Sabe o que têm em comum todas estas figuras? Tiveram direito a menos dias de luto nacional do que a Rainha Isabel II.
Todos os nomes citados, nas mais variadas áreas – política, literatura, cinema, filosofia – honraram o seu país. Deram ao povo português algo que mais ninguém deu. Deram muito mais a Portugal do que a rainha alguma vez sonhou poder dar ao seu próprio país.

Desde o passado colonial violento que a coroa britânica representa, à acumulação de riqueza completamente desproporcional àquilo que é a produtividade real dos monarcas, até aos escândalos cor-de-rosa que não passam de um autêntico reality-show, a monarquia devia já há muito ter desaparecido da vida política de todo e qualquer país.

Para combater esta opinião, tem circulado uma outra que aliás se destaca pela sua leviandade: “mas a rainha Isabel não teve culpa de nada disso”.

Diretamente, talvez não. Mas a hereditariedade tem destas coisas: herda-se o bom e o mau. E, para além disso, a rainha Isabel, durante toda a sua vida, beneficiou de tudo aquilo que fez da coroa britânica, até uma certa altura, uma potência mundial incontornável: violência, colonialismo, segregação, discriminação.
Não é por acaso que, por exemplo, na Nigéria as reações à morte da rainha estão a ser muito mais polarizadas do que no Ocidente: “O país que é hoje a Nigéria foi formado quando os colonos britânicos decidiram juntar o Norte e o Sul, muitíssimo diferentes, numa só nação. Deram poderes políticos aos governantes no Norte, e, quando a guerra civil rebentou, em 1967, apoiaram o Governo federal, com financiamento e armamento. Os historiadores estimam que mais de um milhão de civis igbo, do Sudeste nigeriano, tenham morrido, muitos de inanição. 1

É apenas um exemplo. Muitos mais podiam ser enumerados.

Mas, afinal de contas, como correu o luto nacional?

1 - Chason, Rachel, Meena Venkataramanan, e Rael Ombuor. 2022. «Os fantasmas do passado assombram o luto pela rainha nas antigas colónias britânicas». PÚBLICO. Obtido 21 de setembro de 2022

 Texto: Luís G. Rodrigues
Imagem: Martin Meissner