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Crónica • "Remelas e selfies em hospitais"

Remelas e selfies em hospitais
uma crónica de Filipe Amorim

O meu domingo termina a olhar para o teto do hospital. À minha volta tenho vozes que não reconheço e caras que não me consigo virar para ver. Colocaram-me um colar cervical ao pescoço e relembram-me que não me devo mexer. Limito-me a contemplar os tetos dos vários corredores a que me vão empurrando e ouço as conversas entre médicos e enfermeiros. Falam sem filtros e sobre assuntos pessoais e fofocas. Não parecem importados se eu, ou outros, os ouvem. Eu cá acho que lhes dá um toque mais humano e pergunto-me se o fazem de propósito.
    O meu único receio momentâneo é que se distraiam e espetem a minha maca contra alguma porta ou parede. Estou tão desconfortável, que dispenso outra colisão. Deixaram-me envolvo num colchão insuflável quente que me impede de mover. As minhas sapatilhas rotas e ensanguentadas transpiram-me os pés sem meias e de pouco serve que esteja sem camisola. Está um calor absurdo. E enquanto convoco pensamentos positivos para afastar esta quase claustrofobia que me invade, descubro uma gota de sangue no teto. Não minha, mas ainda assim. É uma gota de sangue esguichada no teto.
    Encostam-me no canto de uma sala e um médico injeta-me medicação para as dores na coxa esquerda. Dizem-me que tenho fazer um raio-X e, se não tiver nada partido, já me poderei levantar para levar pontos. Não sei se entendo muito bem a ordem do processo. Entretanto é suposto ficar a sangrar até à morte? Mas eles é que sabem, eu não consegui ver os ferimentos. Eu só dramatizo.
    Enquanto espero, pego no telemóvel pela primeira vez. Ligo a câmara frontal e tiro uma foto para avisar a família do que aconteceu. Faço zoom e reparo nas remelas que tenho nos cantos dos olhos. Lição de hoje: nunca saiam de casa sem limpar as remelas; nunca se sabe quando serão atropelados e acabam o dia a tirar selfies num hospital.
    
O dia estava tão tórrido. Manteve-se fresca a casa com as janelas fechadas e as várias ventoinhas, mas estava ansioso por sair da escuridão. Apetecia-me uma pizza para o jantar e faltavam alguns ingredientes. Coloquei uns calções, mochila às costas, óculos de sol, fones nos ouvidos e saí pela parte de trás do piso inferior.
    O bafo de ar quente de depois de almoço atacou-me de frente. O vento abafado deixou-me os olhos em lágrimas. Sentia-se o calor entranhado em toda a parte. Coloquei-me em cima da bicicleta e percorri as ruelas de alcatrão. A minha garganta estava seca, o ar ardente. Os músculos das pernas queimavam e eu suava. Não havia pessoas na rua. Os lagartos escondiam-se à minha passagem e os pássaros abrigavam-se à sombra. Não havia um ladrar.
     Mas o supermercado estava agradavelmente fresco. Ao ponto de ser possível tal diferença de temperatura me deixar com um princípio de tosse. Eu tinha a minha lista memorizada e já sabia por hábito o sítio das coisas. Massa quebrada, queijo quark e um iogurte. Uma alface, manteiga de amendoim e um pacote de chicletes.
    Antes de sair ainda ponderei se devia ou não dar um salto à casa de banho. Estou relativamente perto de casa, talvez não valha a pena. Mas fui. Já do lado de fora, despi a t-shirt. Coloquei-a dentro da mochila cheia com a alface gigante, tirei os óculos que me mantinham o cabelo preso e arranquei.
    Num entroncamento aparece um carro pela minha esquerda. Um carro que tinha na sua rua um sinal do STOP. Um carro que não STOPou. E quando percebo que de nada adianta travar, o tempo para. E eu aceito-o. Yup, vou bater.
    E bato.
    Espeto-me contra o carro e deixo-lhe uma mossa na chapa com o joelho. Viro-me para proteger a cara e as minhas costas partem o vidro da porta traseira. Depois caio ao chão e o meu corpo arrasta-se por cima dos estilhaços de vidro. Faço força no pescoço para não bater com a nuca e ouço-o a estalar.
    Assim que a inércia me cessa o movimento, levanto-me. Tenho o corpo a arder. Dou uns saltos e solto uns berros. Primeiro onomatopaicos, depois praguejo a sério. Foda-se, que merda! Caraças, a sério? Até tenho medo de ver o estado da bicicleta. Comprei-a há uma semana, no meu aniversário, depois de finalmente ter recuperado do luto da minha anterior bicicleta roubada dois anos antes. E depois reparo que o Renault Clio do homem está sem vidro atrás e pergunto-me para onde foram os destroços. Descubro-os esmigalhados no chão. E depois descubro-os espetados na minha perna, mão e braços ensanguentados. O sangue escorre-me das costas para a roupa interior e sapatilhas estragadas e tiro fotografias ao local.
    O povoado com alguma idade junta-se à nossa volta enquanto eu protesto. Acabam por decidir, que nem democráticos, que é melhor sentar-me. Estou com demasiada adrenalina para isso, mas faço-o quando me dizem que foi o conselho do paramédico que acabaram de chamar. Trazem-me uma cadeira de madeira, daquelas da escola, e sento-me ao lado das compras trituradas. Dou os meus pêsames à mochila que é uma explosão de quark e espero.
    Vejo alguém trazer um copo de água. Estendo a mão para o receber, mas entregam-no ao velhote que vinha a conduzir. Diz a senhora: "Ah, coitadinho, tragam-lhe uma água que o senhor está-se a sentir mal por ter atropelado o menino". Genuinamente adoro este sempre afiado sentido de humor do Universo.
    Depois dizem-me, muito relaxadas: "Não te preocupes com nada disto, menino! O seguro paga tudo!" A sério? O seguro paga tudo? E estas dores? E o sangue a escorrer-me para o chão? E a bicicleta nova chega quando? Daqui a seis meses, se chegar? E as sapatilhas todas estragadas? E o raio dos ingredientes da pizza também pagam?
    Depois peço desculpa. Digo que sei que não têm culpa, mas que neste momento estou dividido entre a racionalidade e a adrenalina. E estou genuinamente chateado. Podia ter morrido. Diz o homem "Vieste sem camisola, não te vi!", ao que respondo "Ah, então se tivesse camisola já não era invisível". É um STOP, tem que parar sempre!
    Há malta que tira a carta de condução em caixas de cereais. E assim, de um segundo para o outro, se estragam vidas.
    Chegam os paramédicos e agarram-me logo no pescoço. Dizem para não me mexer e protegem-me com ligas. Levantam-me a cadeira, tipo trono, e deitam-me em cima da maca. Tiram-me os vidros das feridas e limpam algum sangue que escorre. Dizem que vou ter que ir ao hospital. Hospital? A sério? Livro-me do COVID e agora vou de cabeça ao Monkeypox?
    Na ambulância colocam um colchão à minha volta que me corta os movimentos e medem-me as tensões e índice glicémico. "Então e o que é que tu fazes?". Suspiro. Bem, lá vai ter que ser... "Sou ator", "Ah!, és atoooor! Mas quê, TVI?". Depois reparo que ele se chama Amorim e mudo de assunto. "Também és Amorim?", "Sou", diz. "Mas és Amorim das cortiças ou também só tens o apelido, mas não o dinheiro?". O outro Amorim ri e diz que não sabe de dinheiro nenhum. Rio também e pergunto se irá ser demorada a minha estadia no hospital. Ele diz que não tem a certeza, mas que é possível que eu não jante pizza hoje.
    Pergunto aos paramédicos se faz sentido eu chegar ao hospital e fazer-me de todo quinado para que me atendam logo; eles riem, mas não era uma piada. Para me animarem dizem que não me aflija. Que depois desta devo conseguir continuar a trabalhar na ficção... como duplo. Eu  rio, desta vez na esperança que seja uma piada.
    "Mas agora aqui entre nós digam-me lá", chuto, "vocês já ligaram a sirene para chegar a casa mais cedo, não já?". "Ah, não, não, achas. Eles ficam com o registo sempre que a gente liga a sirene, por isso temos sempre que justificar". Depois perguntei se eu não tinha direito a sirene. Eles ligaram-na uns segundos "'Tás a ver como tens, já podes riscar essa da lista".
    Depois chego ao hospital.
    E espero. E espero. E espero. E espero.
    Engraçado esta conceito de liberdade. Um carro abalroa-me no meio da estrada e alguém chama uma ambulância. Sou enfiado num piso qualquer de um hospital qualquer. Espetam-me uma cena para as dores, encostam-me a um canto e supõe-se que eu estou de acordo com tudo isto. Estas convenções subentendidas que por agora nos beneficiam, podem muito bem condicionar o nosso poder de escolha numa qualquer distopia futura. Ou isto já sou eu a drunfar?
    E espero. E espero. E espero.
    "Está aí alguém?", pergunto. Continuo fixo no teto e não faço a mínima ideia do que se passa à minha volta. Chega um enfermeiro e pergunto-lhe se ainda vai demorar muito para o raio-X. Ele diz que sim. Então eu digo que tenho que ir à casa de banho, tenho a bexiga cheia. "E tens que ir já?", "Já fazia...", "Já fazias... está bem, eu vou ver".
    Passados uns minutos, descalçam-me as sapatilhas e levam-me para a sala do exame. "Pronto, olha, isto agora vai ser rápido porque os resultados saem logo no computador e o médico vem já falar contigo". Mas o médico não veio. Veio, na verdade, uma enfermeira. "Tens algum familiar lá fora à tua espera?" Tenho. "Então acho que devias avisar que isto vai demorar porque ainda vais ter que fazer ecografia e temos que reportar os resultados". "Ecografia porquê?". E ela diz é para ver se ficou algum estilhaço nos órgãos. E depois diz um nome esquisito. Eu pergunto o que é isso e ela responde que é uma ecografia ao pénis.
    Tudo bem, já estou por tudo.
    Então lá me levam para a sala da ecografia. A senhora chama-me Carlos e eu corrijo-a. Digo que sou Filipe. "Ah, não é o Carlos?", "Não...", "Carlos Filipe? 26 anos?", "Não... Filipe Amorim, 24", "Porra, que isto hoje é só acidentes de viação. Bem, ainda bem que me avisou!".
    E pronto, não é hoje que faço uma ecografia ao pénis.
    Levam-me para a mesma sala e dizem-me que não tenho nada partido. Tiram-me o colar cervical e levanto-me lentamente. Estou dorido, pisado e ainda tenho as feridas abertas. Dão-me pontos nas costas e na perna e saio para os corredores.
    É só quando as pessoas olham para mim que tenho a plena noção do meu estado. Estou nu, descalço, de calções e cheio de sangue seco nos membros. Caminho a mancar e atravesso as várias salas de espera em direção à saída. Uma enfermeira oferece-me umas meias todas catitas e lá vou eu. Recebo alta e saio.
    São onze da noite e estou sentado na esquadra da polícia para apresentar o registo do acidente. Lá fora já está escuro e aqui estou eu, ainda sem roupa. À minha frente está um polícia alto e grosso, que vai registando o que lhe relato. Continua um calor abrasador e eu peço desculpa pelo meu estado. Ele diz que não tem problema. É o mesmo polícia que esteve no local. O Ferreira. Simpático. Decorei muitos nomes hoje. O Ferreira, Amorim, O Miguel, a Joana, o Filipe, o Daniel, o Oleg.
    No final da noite fui descobrir a morada do senhor que me atropelou. Uma vizinha que assistiu ao acidente levou-me até à porta e o homem levantou-se da cama para me ver. Cumprimentei-o e conversámos um pouco. Notei que estava preocupado e queria que soubesse que estava bem, que o pior já passou. Ele pareceu aliviado. Disse que amanhã cedinho ia tratar das papeladas e despedimo-nos.
    
Agora é meia noite e já estou em casa. Tenho a pele rasgada a arejar, as articulações estão cansadas e estou todo pisado. Ainda me dói o pescoço da queda. por isso tenho que pedir ajuda para que me tirem a pizza do forno. A minha pizza. A pizza com os ingredientes que resistiram à queda. A pizza que me disseram que eu não ia ter,
    Depois penso na casualidade da vida. Que se não tivesse ido à casa de banho do supermercado, nada disto teria acontecido. Se tivesse invertido a ordem com que fui buscar a lista das compras, nada disto teria acontecido. Se me tivesse atrasado ou adiantado um segundo, nada disto teria acontecido. Não teria sido atropelado. Ou talvez teria, e teria sido pior.
    
Não tenho ainda a total certeza se o Universo conspira a meu favor ou para o meu mal. Gosto de acreditar que é para o bem, mas sei que sou suspeito. Às vezes faz bem anestesiarmo-nos com uma dose exagerada de esperança. Por isso venero aquela alface gigante que tinha às costas. Pode muito bem ter sido o que me safou.