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Contos Bastardos • "Contra Todos os Riscos"

 

Contra Todos os Riscos

Hoje fui ao mediador de seguros e por pouco não lhe atirei um agrafador à tromba.
(Nenhum bom romance começa assim, mas Virginia Woolf que me ajude aqui com o patriarcado das obrigações mundanas).

O meu seguro automóvel alcança valores astronómicos. Segundo o mediador, tenho “três sinistros de minha responsabilidade nos últimos três anos”. Nunca provoquei um choque em cadeia ao conduzir embriagada contra os rails, mas estes seguradores são das ciências exatas - não interpretam sinistros.

Já pensaram no termo “sinistro”?
Há pessoas que lidam com as mesmas palavras todos os dias e não acredito que alguma vez se tenham debruçado sobre elas. Já nem falo do “amo-te”, ficamo-nos pelo “sinistro”. Faz-me lembrar aquele poema da Mensagem, O Mostrengo.
Macabro, tenebroso, horripilante.  
(Pesquisei por sinónimos e o motor de busca sugeriu-me “sinistro automóvel” - ou sabem do meu cadastro ou as pessoas passam mais tempo a analisar obrigações do que significados das palavras).

De volta ao mediador que quase se tornou alvo da minha reincidente tendência para a sinistralidade: enumerava, vezes sem conta, os meus crimes. Bradava que “certas seguradoras nem estavam dispostas a assumir o risco”. (Prisão de alta segurança rodoviária, preparem-me a cela)

Subiu-me o sangue à cabeça mas contive-me.
Ainda bem - para ele, para mim.
Ainda mal - para o triste agrafador, que teria o dia mais arrebatador da sua vida. Uma história para contar à grupeta de material de papelaria - ao arqui-rival furador, ao destruidor de papel que vivia mortinho para caçar um dedo, à impressora repetitiva e aos carimbos inúteis. Eh! Ele mesmo, a quem diariamente esmurravam quando demorava mais na tarefa, a virar o texto e a agrafar uma testa! Por uma excitante vez na vida!

Para bem dos humanos, nenhum sinistro aconteceu. Quando pegar no meu carro já não me responsabilizo - aí tenho carta verde.


Texto: Sónia Costa 
Ilustração: Filipa Contente