Contos Bastardos • "Ontem morreu a avó Dionísia"
Ontem morreu a avó Dionísia
Ontem morreu a avó Dionísia.
Chorei, mas não demasiado - não vá alguém desconfiar.
Deixou-me uma pequena herança, a avó. Talvez a use para abrir uma tipografia.
Ou para alugar um quartinho para mim.
Ainda a avó está quente na terra e já Lisboa acorda e se espreguiça para um novo dia. Da janela vejo o Mário. Está à minha espera, pontual.
Apresso o processo.
Alcanço o fato engomado.
Enfio a camisa - dois tamanhos acima, para que o peito não me denuncie.
Felizmente o criador não foi generoso comigo no que toca ao tamanho dos seios. Não puxei à avó Dionísia - saí à mãezinha, que leva a vida a chorar-se que é lisa que nem uma tábua.
Tenho de comprar gravatas. As reuniões com intelectuais fazem-me crer que são um detalhe importante. Talvez use parte da herança para isso.
Ah! Os óculos.
Ajeito-os no nariz e olho-me ao espelho, agradada com o resultado.
Foram uma bela pechincha na feira da ladra. “Tem uma visão perfeita”, disse o oftalmologista. Certo, mas onde já se viu escritor sem óculos?
Passo a escova pelo cabelo rente, gesto quase automático antes de o tapar com o chapéu preto de feltro. Pego o bigode postiço e ajusto-o - a subtileza do detalhe.
Está completo o disfarce.
Saio à rua. Lá está o Mário, à conversa com o barbeiro.
Vai andando e guarda-me um lugar na esplanada!
Sento-me no lugar do costume, n’A Brasileira.
No meio da multidão, um vislumbre: Ofélia.
Mas passou, vi mal.
Malditos óculos desnecessários, empecilhos.
Era alguém parecido.
(Perdoa-me, bebézinho, por ter ousado confundir-te.)
Abro o caderno.
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus."
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente
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