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COMING UP | CODA

No papel, CODA é um romance água com açúcar com algum sumo mas que não foge da fórmula que encanta qualquer um. Contudo, ao entrarmos no filme o que temos é uma narrativa altamente emocional que nos toca de diversas maneiras e nos envolve num amor profundo. CODA coloca em cheque a sociedade, coloca em perspetiva a  capacidade de aceitarmos alguém com alguma deficiência, coloca-nos em ponto de rebuçado num abraço que em algumas cenas é apertado o suficiente para nos fazer chorar e noutros nos dá o quentinho que precisamos para sentir todo o amor que esta longa-metragem tem para dar. 

CODA não é um filme típico que à primeira vista já transpira Oscar, pelo contrário, é uma historia maravilhosa que corre nas beiradas e que por ser tão despretensioso em mostrar o glamour de uma premiação torna-o puro. Fora da caixa habitual da Academia, CODA é um justíssimo nomeado que certamente conquista um espaço na nossa memória afetiva por muito tempo. Falamos de tudo isto em mais uma edição do Coming Up dedicada aos Oscars, fica connosco. 

Se no ano passado Sound Of Metal já mexeu um pouco com o nosso íntimo e já nos deu um apertão para olharmos ao nosso redor e construirmos uma sociedade que esteja disposta a ajudar o outro e a preparar para que todos tenham oportunidades iguais, então com CODA essa mensagem ganha quase um tom urgente com a longa-metragem a abordar o assunto com uma linguagem muito mais singela e próxima de qualquer um. 

Até porque CODA é uma daquelas histórias que podemos ver em família num domingo à tarde e que até ganha pontos com isso, porque a narrativa tem uma carga moral que é capaz de nos dar um murro no estômago e nos mostrar que temos muito que aprender.

Ao longo de toda a história lidamos com contrastes constantes, daqueles que não ignoram em nada a realidade e que a transpõem de uma forma clara sem serem bruscos ao ponto de embrutecer o filme. Vamos por partes, começando pelo arco mais genérico que envolve o sonho de Ruby em construir uma carreira enquanto se sente na responsabilidade e é quase obrigada a subjugar-se ao negócio da família para ajudar os pais. 


Esta é a parte mais clássica desta obra, mas nem por isso menos interessante até porque o argumento utiliza este chavão mais clichê para abrir a porta ao grande tema do filme. Ruby vem de uma família de surdos, onde ela é a única pessoa fora da comunidade que realmente os entender e que consegue, até por uma questão de educação, vê-los para além dessa limitação. 


Mas esse nem é o ponto mais interessante desta dicotomia que o filme apresenta na vida de Ruby. Ela quer fazer carreira na música, é dona de um talento incrível que é notado por quem realmente entende da arte, mas ao mesmo tempo que a vemos brilhar somos confrontamos com a dura realidade de que a sua família não tem noção do que está a acontecer, até porque tal como o filme faz questão de explicar, a música não é algo que possa ser, obviamente, aproveitado em família. 


Para além da relação de dependência que a família tem para com ela existe também esse ponto de não lhes ser sequer possível entender até onde vão as capacidades da filha mais nova. E tudo isto gera cenas de nos fazer jorrar lágrimas, porque somos colocados na posição deles, somos colocados à prova e convidados a sentir o que eles sentem numa sala de espetáculos. 


Enquanto todo o público vê o brilhantismo do que está a acontecer em palco, se envolvem e emocionam, eles estão a ali a cumprir o papel de pais num silêncio atroz que nos deixa desconfortáveis a nós que assistimos ao ponto de não conseguirmos sequer imaginar o que eles estão a sentir naquele momento, por mais que se esforcem, e sim esse esforço nota-se quando o pai de Ruby se levanta para aplaudir mesmo que ela tenha a completa noção que ele não ouviu uma única palavra do que ela cantou. É amor.



Mas, seguindo esta lógica de contrastes que CODA nos apresenta, o filme explora também os vários episódios de bullying retrógrado que acontecem não só com Ruby mas com toda a família num aproveitamento completamente ridículo da sociedade em cima de uma limitação física. 


Isto é algo que revolta qualquer um que tenho algum sentido de noção, porém a obra consegue ir mais longe e mostrar-nos, também, o preconceito que existe do outro lado, enriquecendo o filme de uma forma peculiar mas muito real. É óbvio que esta família já passou por muito e que a experiência lhe deu alguns escudos, mas esses escudos transformaram-se em capacetes e armaduras que os levam a criar uma ideia pré-concebida de que todos os que são ouvintes os vão renegar. 


Fecham-se na sua concha e começam a olhar para eles como um grupo que nunca os vais entender e compreender, deixando por completo, sequer, de se tentarem juntar a essa comunidade. E se esta visão ampla de um portfólio de retratos que não deixa nenhum dos lados isento de culpas já é uma ideia cheia de criatividade, o filme consegue a proeza de defender essa ideia até ao fim sem deixar que a razão caia para nenhum dos lados, porque tanto quem ouve como quem não ouve e não se dá a conhecer acaba por gerar o preconceito. 


É interessante explorar esse lado, não abordar estes temas pelo olhar da vitimização é um dos grandes segredos de CODA, com cada cena a ser meticulosamente pensada para não deixar cair a ideia de que os dois lados têm falhas. 


Temos o comerciante que utiliza a falta de audição de Leo para o enganar, mas temos também a mãe Jackie que se recusa a dar-se a conhecer a outras mulheres porque já sabe de antemão que elas não a vão compreender. É experiência de vida, misturada com estereotipo, mas no fundo é uma grande lição de moral para nos dizer que é bonito aceitarmos um mundo em que somos todos diferentes, mas estamos tão preparados assim para fazer parte da solução?


Mas se tudo isto tem uma carga emocional gigante atrelada, CODA também se sabe defender e sabe erguer uma história que não precisa de cair num drama profundo para passar a sua leitura. 


Há espaço para histórias mais mainstream, mesmo que o cunho da mensagem do filme esteja constantemente, e bem, sempre implícito. À parte dos dilemas que já falamos anteriormente, Ruby é uma adolescente normal que passa como a maioria de nós por fases de descoberta. Além de ter de lidar com o clichê clássico de ter a melhor amiga a envolver-se com o seu irmão mais velho, passa também ela pelo seu primeiro amor. 


Miles chega à vida de Ruby com o pé esquerdo, cometendo um erro comum, e passando por uma longa jornada para se compensar depois de ter involuntariamente ter entrado para a lista de pessoas que a fizeram passar por um episódio de bullying


No meio deste arco, que esse sim é o típico água com açúcar, o que temos é uma química fluida de um romance que acontece no seu tempo e que não ocupa nem demais nem de menos. Cumpre o seu propósito para tornar a história mais abrangente ao mesmo tempo que não retira o foco central e deixa espaço para que Ruby não seja uma adolescente submissa à paixonite da adolescência, até porque isso seria até estranho tendo em conta que todo o background da personagem nos faz entender que estamos perante uma menina que cresceu depressa demais. 


É um apontamento que normaliza um pouco a experiência de Ruby, mostrando que apesar de todas as suas vicissitudes consegue passar por problemas mais comuns mas um grande acerto por manter a linha coerente da personalidade da personagem. Nos detalhes muitas das vezes percebemos o quão boas são as histórias, e CODA, a este ponto, já podem perceber que toca notas de perfeição em vários momentos.



CODA rende retratos muito bons do que é a vida de quem vive com alguma condicionante e faz tudo isso sem parecer forçado, sem parecer que está simplesmente a documentar uma série de experiências recolhidas em depoimentos. Tudo é encadeando uma série de eventos num arcaboiço criativo que tem pulso firme suficiente para saber muito bem o que quer entregar e onde quer chegar. 


Por mais que assuma um papel de responsabilidade social gigante, esta é uma obra que nos toca, que consegue ser emocional e quase intima. Aquela família torna-se próxima e nos sentimos a revolta por Leo quando ele discute com o cliente do bar depois de ele lhe ter entornado cerveja em cima e não ter a mínima empatia, sentimos uma aflição enorme nas cenas em que vemos os personagens ouvintes que orbitam à volta a falar entre si quase ignorando a presença de Leo ou Jackie, quase berramos com o ecrã no momento em que Frank perde a licença. 


Enfim, a lista de exemplos podia continuar com o momento em que todos acusam Ruby de não ter ido à pesca com Frank e Leo, em que sentimos que precisamos de ser parte ativa daquelas discussão para construir pontes entre os dois lados. 


Mas o momento em que talvez nos sintamos mais parte daquela família é a audição de Ruby, quando ela se desdobra e canta com linguagem gestual a música para o seu irmão e os seus pais, é o momento em que filme nos desfaz, é o ponto em que o nosso coração entende o amor que existe ali, numa cena que limpa, bonita e tocante pela sua pureza. Por mais clichê que seja, neste momento já estamos tão envolvidos que nos entregamos de corpo e alma.


Despindo um pouco todo o magnetismo que CODA emana, infelizmente este é um daqueles títulos que vai aproveitar o hype da nomeação para ser visto por muito mais pessoas. E esse já o maior ganho, é, na verdade, o ponto principal que dá sentido a espetáculos como o Oscar


No fundo, o grande objetivo é mostrar ao público obras que acrescentem, que os façam ver as maravilhas que ainda se produzem, e fazer entender que há sempre novas formas de fazer arte, nem tudo está inventado. 


Dada esta declaração de intenções, CODA deverá sair do Dolby Theatre de mãos vazias. Este é um ano muito imprevisível, e CODA era um dos justos vencedores de Melhor Argumento Adaptado contudo, Dune ou The Lost Daughter deverão ser os dois front runners, precisamente por CODA ser um filme que não tem essa transpiração de um budget gigante que a Academia adora agradar. 


Troy Kotsur entrega uma interpretação seguríssima com o seu Frank passando por momentos de comédia até àquele que é um dos pontos mais emotivos de CODA em que sente a vibração das cordas vocais numa tentativa de tentar entender o talento de Ruby, numa cena que só por si nos destrói, mas que talvez não seja suficiente para levantar a estatueta. 


À margem de tudo isto e considerando que apesar de figurar na lista de Melhores Filmes as suas hipóteses reais de ganhar são ínfimas, CODA podemos garantir que já ganhou um espaço no nosso coração com várias cenas memoráveis e com uma história de superação incrível que é realista, contada com emoção e um detalhe que é raro na industria. 


É uma daquelas histórias que entra para a lista de obras como Captain Fantastic ou Room que não levam o Oscar mas levam em troco o coração de milhares de pessoas, que amanhã até podem já se ter esquecido do filme vencedor mas que vão ter CODA como uma referência para dar a um amigo que procure um filme que entretenham e tenha, ao mesmo tempo, uma voz. 


São raros os casos em que a conjugação dos dois pontos seja tão perfeita, e isso já diz tudo o que podemos refletir sobre esta verdadeira obra.