um conto de Filipe Amorim
Último dia na cidade que tanto quero chamar casa. Por esta altura da semana já tinha fechado com sucesso uma reunião e filmado uma cena divertida e básica o suficiente para me pagar a viagem. Para cumprir tudo a que me propus, faltava-me apenas um encontro com um fotógrafo, mas naquele momento só me apetecia comer. Ou trincar, vá. Na vida fuma-se pelo vício da boca e come-se pela vontade de mordiscar. E hoje eu desesperava por algo crocante.
De telemóvel em riste para não me perder, esforcei os meus pulmões pelas sete colinas de Lisboa e dei com um minimercado que não existe na urbe em que nasci. Entrei e depois de explorar produtos de marcas que desconhecia, atraíram-me uns cereais de soja cuja tabela nutricional e textura me encheram a mochila de volta para casa.
Subi os quatro pisos do prédio velho e entrei no apartamento de paredes brancas restauradas que tão bem me acolheu por algumas noites. Deitei-me na cama, puxei de um recipiente de plástico e despejei os cereais. Não era o melhor sabor do mundo, mas valiam incontestavelmente pela consistência. Em poucas dedadas me enchi e fui-me sentar à mesa para conversar com quem tão bem me recebeu: a querida Ana, que odeia ter olhos azuis por considerar que quem os tem não recebe outro elogio que não esse; a amiga Sara, a quem agora devo uma melancia; e a enérgica e divertida Sofia, bem-nascida em Famalicoum.
Enquanto as três enfermeiras contavam peripécias passadas no contexto de trabalho, dei por mim ganhar consciência do meu fluxo intestinal. A minha barriga roncava ferozmente e decidi levantar-me para lhes apresentar a minha aquisição estaladiça. Pousei os cereais, fiz um pitch que ostentava a minha mais recente compra e li a embalagem do produto: “Conselhos de preparação: Colocar de molho cerca de 30min. Escorrer bem e cozinhar como se fosse carne, incorporando em pratos como jardineira, estufados ou com legumes”. Como assim cozinhar? Isto não é de comer com leite? Não era. Tinha acabado de comprar 400g de soja crua em nacos que devorara como se fossem chocapitos do Lidl.
Almoçámos o resto da massa à bolonhesa e usufruímos o serão com calma. Quando consultei o relógio, percebi que o horário começava a apertar e despedi-me sem saber quando voltaria a vê-las. Sabia, por esta altura, que o encontro com o fotógrafo tinha sido adiado por umas horas e estava demasiado perto da partida do meu transporte de regresso. Apressei-me até ao local combinado e começámos o trabalho com uma hora de atraso. Fotografámos em lojas de tatuagens, cafés e cozinhas de restaurantes e terminámos a produtiva sessão bem mais cedo que o esperado.
Fui a tempo de comprar meio frango do churrasco, amendoins e uma barra de proteína para o jantar. Incomodou-me a possibilidade de o enorme banquete me ser barrado à entrada da camioneta e chamei um sem-abrigo para lhe oferecer o pacote de amendoins. Escondi a barra no bolso de trás das calças e embrulhei a embalagem com o frango a uma camisa que usei no dia anterior. Passei a inspeção e entrei. Esperava-me uma longa viagem de 4h30 até ao norte.
O meu corpo relaxou quando a camioneta arrancou. Os músculos, ossos e tendões que tanto se esforçaram por me manter vivo podiam finalmente descansar. Devorei o frango com um garfo e uma colher de sobremesa e deixei-me escorregar no banco.
Tinham-se passado 10 minutos quando a camioneta fez uma travagem brusca. Ergui o sobrolho e espreitei pela janela. Estávamos no quilómetro 10 da A1 e à nossa frente prolongava-se um congestionamento até ao horizonte. As pessoas começaram a sair dos carros e a ir para a estrada. O trânsito estava caótico e não se movia. Uma das passageiras citava uma notícia que informava que a Brisa previa que a situação só ia acalmar às 23h30. Eram 19h10. Perguntei-lhe se era às 23h30 de Espanha ela riu-se, mas não respondeu. Eu ia chorando.
Saímos todos da camioneta, pisámos o chão da autoestrada e trocámos passagens de viagens e aventuras semelhantes. Às 23h o trânsito começou a escoar e arrancámos. Fechei os olhos e rendi-me a uma vigília adormecida.
Quase quatro horas depois chegámos ao Porto. A camioneta fez um estacionamento demorado no Campo 24 de Agosto e saíram alguns dos passageiros. Despedimo-nos com a cordialidade de quem ultrapassou um mesmo obstáculo e comunicou-nos o motorista, o Sr. Rui, que tínhamos direito a uma paragem de cinco minutos para esticar as pernas. Afastei-me da camioneta e procurei um canto confortável para usufruir do meu privilégio de homem: urinar onde bem entender. Isto porque se há coisa a que me recuso é a ter que pagar para mijar numa casa de banho pública.
Regressei à camioneta orgulhoso do meu ativismo e subi os três primeiros degraus. Depois parei. Contemplei com ligeira estranheza as subtis alterações do espaço e tentei em vão construir uma lógica mental. É que a costura destes assentos é vermelha, as luzes estão em posições diferentes e eu não reconheço nenhum destes passageiros. Passa-se aqui qualquer coisa.
Saio a correr da camioneta e vou ter com o motorista que pica alguns bilhetes
“Este é o autocarro que vai para Braga?”
“Este é o autocarro que vem de Braga, amigo.”
“Então este não veio de Sete-Rios?”
Ele, seco: “Não, este é o que vai para Sete-Rios.”
Ó.
Merda.
Olho à volta e não há mais camionetas.
“Então, mas onde é que está o que vai para Braga?!”
“Esse saiu há um minuto.”
“Saiu sem mim? Eu acabei de chegar de Lisboa!”
E ele despreocupado: “Pois, não sei o que lhe dizer.”
Volto a olhar à volta para ter a certeza que não existe mesmo nenhum outro autocarro. O parque está vazio e cresce-se ansiedade na minha voz: “E não pode ligar para o motorista e dizer para voltar para trás?”
Ele encolhe os ombros: ”Eu tenho lá o número do outro motorista.”
“Então o que é que eu posso fazer?”
“Sei lá, vá ali informar a bilheteira.”
A bilheteira!
Vou a correr e encontro a bilheteira. Entro apressadamente e dirijo-me ao balcão.
“Senhora, a camioneta que faz Lisboa-Braga acabou de sair sem mim”.
Ela ergue os olhos com toda a calma do mundo, num compasso de quem está a trabalhar de madrugada, e não responde.
E eu: “Será que podia ligar ao motorista?”
Ela pega num telemóvel de teclas e o ecrã ilumina-se. Eu vou alternando o olhar entre a sua nuca de cabelo vermelho e a ponta da unha que esmiúça o botão dos contactos. Mas quantos contactos é que esta mulher tem no telemóvel?! Ela finalmente leva o dispositivo ao ouvido e espera. E eu espero. E ela espera. E eu espero. E a camioneta para Braga cada vez mais longe.
Ela abana a cabeça e pousa o telemóvel: “Pois, o telemóvel diz que está desligado”.
Saio a correr da bilheteira e vou ter com o outro motorista: “A senhora da bilheteira diz que o motorista tem o telemóvel desligado, há alguma coisa que eu possa fazer?”
“Pois, não faço ideia, eu vou agora para Lisboa”.
O meu ‘merda’ dá lugar a um ‘foda-se’. Volto a correr até à bilheteira.
“Minha senhora, será que me podia dar o número de telemóvel do motorista para eu ir tentando ligar?”
“Ah, nós aqui não podemos fazer isso… Mas fique com o telefone da bilheteira de Braga e ligue-lhes a explicar”.
Ela cita-me o número e eu ligo. O telefone também está desligado. Olho à volta à procura de soluções. O meu instinto explora o espaço em busca de algo a que se agarrar. Os poros junto à raiz dos meus cabelos começam a abrir.
Ela encolhe os ombros: “Espere até amanhã e depois ligue-lhes”.
“Minha senhora”, sublinho em desespero, “eu vivo em Braga. A minha mala de viagem está na camioneta. A minha mochila está na camioneta. As minhas chaves de casa estão na camioneta. A minha carteira está na camioneta”.
Os restos do meu frango estão na camioneta!!!
Ele compreende o meu desespero e eu insisto: “Pode tentar ligar-lhes outra vez?”
Ela pega no telemóvel antigo e leva-o ao ouvido. Alguém responde do outro lado da linha. É o motorista. Ela explica-lhe a situação e eu espero por uma resposta.
Ela abana a cabeça: “Pois, mas ele diz que não pode voltar atrás porque já atrasou demasiado com o trânsito da A1”
“Pois, eu sei que atrasou, eu também estava lá!”.
Ela vinca o lábio com compaixão, mas eu embirro: “Então mas ele foi embora sem mim, o que é que é suposto eu fazer!?”.
Ela não responde logo e eu suponho que ouve uma qualquer justificação pela parte do motorista.
“Vai algum autocarro agora para Braga?”, continuo.
“Não, agora só amanhã”.
“Mas então o que é que eu faço?!”.
E aí surge uma voz. Por cima do meu ombro. E ai que voz. Ouço-a atrás de mim e vem calma, serena, reconfortante, tímida, perfeita.
“Eu posso ajudar-te…”
Viro-me. Ao meu lado está uma rapariga de rabo-de-cavalo, saia e casaco de ganga.
“Eu também perdi esse autocarro e então a minha mãe vem-me buscar e vamos para Braga…”
Eu olho para ela para tentar construir o desenho da cara que se esconde por trás da máscara.
“Estás a falar a sério?”
E ela, tão serena: “Sim, ela deve estar mesmo a chegar…”
– notem que todas as falas desta, para sempre, garota estão pontuadas com reticências para demonstrar a leveza com que os meus ouvidos captavam o seu tom de voz.
Eu olho para a senhora da bilheteira, que parece quase satisfeita com este desfecho.
“Será que podia pedir ao senhor motorista para esperar por mim quando chegar a Braga? Eu chego logo uns minutos a seguir a ele”.
Ela repete as minhas palavras para o telemóvel e eu olho para a miúda atrás da máscara
“Estás mesmo a falar a sério?”, pergunto incrédulo. Depois brinco: “É que eu até já estou a suar com isto”.
Ela sorri, maternal: “Sim, estou mesmo. É que eu estava aqui este tempo todo a assistir à vossa conversa e quando soube que a minha mãe vinha lembrei-me logo de te dizer…”.
Como assim ela estava aqui este tempo todo a assistir à conversa e o meu cérebro decidiu ignorá-la como se fosse a ponta do nariz ou o cheiro de um perfume a que nos habituamos? A ela, a minha ninfa do campo 24 de Agosto.
A senhora da bilheteira confirma-me que o motorista vai esperar por mim quando chegar e eu sorrio. Sorrio e fico mais leve. E olho para a rapariga ao meu lado, a Lucinda. Ai, Lucinda. Só não te beijo porque isso não seria o suficiente. Só não a beijo porque a afronta física que isso implica não faria jus ao que ela por mim fez e eu por ela senti naquele momento.
Entrei o carro e sentei-me atrás no lugar do meio. Quis ser um bom hóspede e tinha uma vontade genuína de conhecer esta Lucinda e a mãe que hoje me salvaram. Debrucei-me para a frente e conversámos. A Lucinda estuda piano, o meu instrumento de eleição, e ensina yoga, uma prática que admiro. A Lucinda foi vegetariana durante dois anos e agora é vegana. A mãe dela foi professora de uma das minhas antigas namoradas e ambas a conhecem.
Sem documentos e nada mais que uma roupa de verão a proteger-me da madrugada, sigo à boleia com duas estranhas anónimas cuja bondade desprovida de interesse e egoísmo terá para sempre a minha mais sincera gratidão. Obrigado, Lucinda. Obrigado, mãe da Lucinda.
Deixaram-me na central de Braga e fui a correr em direção à camioneta.
“Ó, senhor Rui”, chamei.
Entretanto já não lhe guardava rancor. Quase o abracei. Quase que também levava um beijo. Entrei na camioneta e procurei o meu lugar.
Agora sim as costuras com a cor certa. Agora sim as luzes na posição correta.
Peguei na minha mochila e coloquei-a ao ombro. Escondi os ossos do frango debaixo do braço e fui buscar a minha mala pesada, tristemente repulsada no porta-bagagens.
Por esta altura já só quero chegar a casa. Não à casa da minha avó, onde considero viver há uns anos, mas à dos meus pais. A minha alma pede o conforto do espaço onde todos os anos se festeja o Natal. Não me imagino, hoje, deitar em nenhum outro sítio que não a minha cama de solteiro no quarto partilhado com o meu irmão.
Então, entro de rompante no apartamento da minha avó. Pouso as tralhas à porta e vou até ao quarto para colecionar alguma roupa suja. Preparo-me para sair e abro a cesta onde guardo as minhas chaves do carro. Mas a cesta está vazia. Vou à primeira gaveta da cómoda, onde escondo a segunda chave, e também não a encontro. Vasculho nas gavetas da sala, do quarto, escritório e da cozinha. Vasculho, até, na gaveta do pão. Nada.
Tomo a decisão de estender a minha busca ao quarto da minha avó e, sorrateiramente, entro. Abro, devagar e com cuidado, a gaveta da cómoda, e encontro as duas chaves. Foi castigo, sei que foi castigo. A matreira escondeu-me as chaves por eu me ter recusado a pagar o seguro do carro. Olhei-a no escuro enquanto dormia e adorei-a.
Mas tudo fica bem quando acaba bem. De chave na mão, levo a casota às costas, desço as escadas do prédio e procuro o carro no largo exterior. Abro a mala, coloco com cuidado os meus pertences e sento-me ao volante. Suspiro de felicidade. Espera-me uma viagem de 15km até casa dos meus pais e estou grato por este, agora sim, desfecho. Estou em casa, estou aqui, e vou matar saudades de conduzir.
Pauso por momentos para sentir o conforto do assento nas minhas costas e o volante na palma da mão. Coloco a chave na ignição e rodo-a. O carro faz um som pouco glorioso. Volto a rodar a chave. As luzes do velocímetro ligam intermitentemente e voltam a apagar. A bateria está gasta; o carro não pega. Tento uma terceira e quarta e quinta vez e desisto. Depois sorrio. E depois rio. E solto uma gargalhada desproporcional à situação. Saio do carro e fico de pé na rua. Olho para o prédio da minha avó ao longe, mas não me consigo render à ideia de que ali passarei a noite.
Volto a entrar no carro e ligo o telemóvel. É de madrugada, mas o meu pai aparece disponível nas redes sociais. Então ligo-lhe. Ele atende-me e percebo que o acordara. O meu pai não estava disponível nas redes sociais. Dormia há horas e eu importunei-o para lhe contar a minha aventura. Ele, solidário, ensonado, gasto e com o sono interrompido, pergunta-me, num tom que também merece reticências: “Queres que te vá buscar?...”. E eu saboreio as suas palavras.
“Vens?...”
E o meu pai veio. Ele veio. Bem vestido, camisa azul arranjada, sapatos aprumados, cinto escuro de couro e um sorriso radiante. Abracei-o quando o vi e percebi, pela nossa falta de coordenação, que não nos abraçamos há vários anos e já não sabemos como o fazer. A minha mão pousada no seu ombro e ele a dar-me pancadinhas das costas.
Nunca um abraço sem jeito soube tão bem.
Chego a casa às três da manhã e faz sete horas que saí de Lisboa. Os meus músculos, ossos e tendões ainda se esforçam por me manter vivo e eu sei que lhes devo uma devida ceia. Vou até à cozinha e abro o armário. Os meus cereais: granola a sério adoçada com polióis.
Aperto a mola e abro a embalagem. Encho a tigela de loiça e sento-me no sofá a comer. Hoje eu desesperava por algo crocante. E tive-o.
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