COMING UP | Nine Perfect Strangers
Em Big Little Lies e The Undoing o drama está elevado ao expoente máximo, em Nine Perfect Strangers também o temos mas aqui temos um terreno muito rico, com conteúdos que casam com muitos géneros e que facilmente podia figurar na mesma coletânea que os títulos de Jordan Peele com a Blumhouse. Não sendo inteiramente um terror, é um híbrido de géneros que agrada, e que une na mesma equação detalhes que agradam ao mainstream com personagem que têm as clivagens dos filmes mais eruditos. Numa perspetiva que tem tudo para nos levar a um questionamento sério sobre a nossa própria existência, Nine Perfect Strangers é o tipo de história que se supera a cada episódio enquanto nos envolve com cada arco de uma forma tão subtil que se torna viciante. Falamos-te de tudo isto em mais uma edição do Coming Up, fica connosco.
Tudo o que aqui se passa gira em torno da lógica existencialista com a materialização de um suposto Paraíso que tem tanto de limbo quanto de inferno à medida que a narrativa vai avançando. Narrativa essa que nos deixa constantemente mensagens dúbias que trazem um apelo semelhante aos filmes de terror psicológico da Blumhouse enquanto nos apresenta uma série de conceitos que ajudam a sustentar a analogia com o lado mais transcendente sem necessariamente apelar ao universo bíblico para se sustentar.
Com uma boa dose de alegorias interessantes e uma lógica tão coesa e justificável, mesmo com temas que têm sempre muitas lacunas quando tratados de forma mais objetiva, pode facilmente envergonhar o desfecho de Lost, entregando em em apenas três capítulos um trabalho de construção e ambiente que nos deixa com a pulga atrás da orelha do primeiro ao último segundo, sem sabermos para onde vamos, mas com vontade de resolvermos o quebra-cabeças por nós próprios, no fundo, Nine Perfect Strangers é um desafio para quem vê.
Tranquillum tem as paisagens e todos os apetrechos para o tornarem num sítio idílico até que aparece Masha, uma figura fria com aspeto angelical, que começa a distorcer pedaço por pedaço essa nossa noção de ter um pequeno Paraíso na Terra. Por mais que o texto da série seja propositadamente ambíguo para nos deixar múltiplas interpretações há dois caminhos muito lógicos pelos quais a narrativa de Nine Perfect Strangers pode seguir.
Enquanto todos os convidados parecem estar numa espécie de julgamento final com uma espada que lhes promete cortar todos os medos, anseios e problemas do passado, todo o processo parece ser uma espécie de desprendimento com o lado humano de cada um, como se à medida que superam uma das suas batalhas estivessem mais perto de ascender e alcançar um patamar mais próximo da realidade celestial que o ambiente da série nos sugere.
Nesta lógica, ou no caminho desta teoria, o caminho de Masha poderia passar por se tornar num paralelo com o arcanjo Miguel, e sim, Miguel e não Lúcifer. Porque na sua conceção de definição bíblica Miguel procura a justiça pelos pecados, pelos erros, dirigido com um foco em que apenas importam as regras sem se preocupar em entender as emoções, ao contrário de Lúcifer que a sua essência é toda revestida a despeito, ódio, e outros sentimentos que tais. Essa busca por colocar todos os convidados num lugar confortável purgando todos os pecados do seu caminho, casa muito bem com essa imagem de Miguel enquanto o justiceiro que procura fazer com que as regras sejam cumpridas independentemente dos meios que usa para esse fim.
Mas, por outro lado, a série também pode não estar a seguir um percurso tão transcendente assim e voltar-se mais para problemas do mundo atual e terreno, como a exploração da dor num olhar peculiar sobre a forma como a indústria olha para a dor, o luto e o sofrimento como uma forma de ganhar lucro. Uma perspetiva que justificava os experimentos químicos que fazem com os batidos dos seus convidados, quase como se lhes injetassem uma espécie de droga que os leva a um estado de constante questionamento, e a reviverem com mais ênfase as suas emoções, tornando aquele sistema numa adição, numa necessidade.
Seja qual for o caminho, gabamos a capacidade de em apenas três episódios já nos ter apresado um texto tão rico, com caminhos tão interessantes e profundos sem que o ritmo da série se torne arrastado ou as personagens percam o interesse para darem lugar a uma mensagem maior.
Para além do brilhantismo com que trataram o plot principal é que nos abre caminhos para discussões e teorias, os dramas individuais não ficam atrás com questões pesadas mas com as quais nos é fácil relacionar e sobretudo tentar compreender cada detalhe das atitudes que vão tomando.
Nos três primeiros capítulos todos conseguem ir roubando os holofotes em algum momento, deixando um rasto de discussões que vão para além do episódio em si é que nos levam a questionar algumas das nossas opções na vida. Jessica, por exemplo, tem à primeira vista o arco mais clichê, mas a profundidade com que vão dando camadas à personagem mostra bem o outro lado das redes sociais e dá-lhe algum sentido e emoções que vão além do mundo virtual, numa atuação bastante convincente e inesperada de Samara Weaving. Não se ficam por pintar apenas o quadro bonito das redes sociais e trazer esses malefícios para a vida do casal, há dramas maiores por trás e ainda nos deixa com a pulga atrás da orelha para sabermos mais sobre Ben, que também parece ter várias pedras no seu caminho.
O discurso dele sobre ter ganho a lotaria e não ter trabalhado um único dia, deixa no ar a questão: “E se fosse comigo?”, por mais que achemos que nunca nos iríamos sentir daquela forma, a verdade é que nunca podemos ter cem por cento de certeza, enquanto o personagem nos faz colocar em perspetiva algumas das nossas certezas sobre como nos iríamos comportar caso nos calhasse a suposta sorte grande. Um “e se?” pouco habitual mas que não se preocupa em dourar a pílula, é que mostra bem aquela velha máxima de que o dinheiro ajuda mas não traz felicidade.
Aliás, a série trabalha, em todos os seus arcos, com a ideia de perfeição e com as convenções sociais sobre o comportamento humano em relação a determinadas situações, e a beleza está, exatamente, na forma como o texto vai desconstruindo essas ilusões de perfeição, criando arestas e cimentando o quão diferentes somos na reação aos vários problemas que a nossa vida nos vai apresentando.
Há vários destaques neste elenco, mas é impossível não darmos especial ênfase a Melissa McCarthy, que não rouba os holofotes. Ela é o holofote da série. É impossível não rirmos em cada cena em que Frances aparece, na mesma medida em que sentimos a dor visceral daquela mulher enganada, pouco realizada, mas que mantém a imagem pública de uma carreira de sucesso. Além dos dramas pessoais que a personagem atravessa ainda tem de lidar com a exposição pública e com as expectativas que os outros têm sobre ela.
Mas à parte de tudo o que a personagem representa, o magnetismo de Melissa é algo soberbo de se ver, esteja a contracenar com quem quer que seja, ela brilha com diálogos construídos com uma inteligência que só torna tudo ainda mais interessante e uma naturalidade que nos deixa de queixo caído. A personagem é o respiro certo para um argumento que lida com tantos dramas em simultâneo, mas não tem um tom de comédia que force a trama a ser algo que não é.
É como se Nine Perfect Strangers beneficiasse do talento para a piada que Melissa traz, ao mesmo tempo que Melissa aproveita cada cena para se mostrar como uma atriz multifacetada. Na verdade, é mais uma prova como este mercado do streaming pode oferecer aos atores bons papéis e com destaques que poderão, e vão certamente, render prémios.
Do detalhe do guarda-roupa até à história da burla que casa muito bem com os novos esquemas do mundo atual, Frances rouba a cena e tem tudo para ser a dona do desfecho final da para com a sua super intuição, como diz Jessica, entender o que está para lá da cortina de Tranquillium.
Para já é a personagem com mais lucro na experiência com um amor a mudar o destino dela (caso o destino siga um percurso normal, mas isso ainda temos de esperar para ver). Mesmo merecendo destaque pela sua performance incrível, Melissa não torna a história sobre ela, é mesmo com ela a ser uma das cabeças de cartaz, há espaço para que todos os outros brilhem, mas ainda vamos falar sobre eles.
Em matéria de elenco, continuamos na cruzada de redescobrir o talento de Nicole Kidman que nesta terceira incursão sequencial no universo das séries continua a dar provas de que o seu talento está intacto calando muitos dos críticos que foram carrascos da sua carreira. Com alguns laivos do seu trabalho inesquecível em The Hours, a sua Masha é o ponto central para criar a sensação dúbia que move todo o argumento de Nine Perfect Strangers.
A expressividade contida ajuda a manter a dúvida sobre o caráter, sobre as ações e sobretudo sobre as motivações, ao passo em que nos deixa com a certeza de que nada é inteiramente por acaso. O aspeto angelical que Nicole carrega dá à personagem a beleza que precisa para o ar famele fatal de Masha, e distância-a dos desafios anteriores da atriz neste mundo do streaming.
Enquanto em The Undoing e Big Little Lies ela não desce do salto e mantém o seu astuto de diva com personagens num determinado estatuto e uma classe social próxima da que imaginamos que alguém com a influência de Nicole Kidman tenha, Masha é exatamente o que ela precisa para se desconstruir e sair da caixa em que a catalogaram com uma protagonista com substância é que volta a reviver os papéis da era de ouro da sua carreira.
Kidman é um dos exemplos em como as séries podem ser a grande boia de salvação para fugir aos estereótipos, e mesmo que existam vícios intrínsecos na sua atuação Nicole está defendida por atores capazes de segurar a narrativa no topo e tornar até a cena mais simples em algo memorável. Do diálogo com Melissa até ao choque emocional com Napoleon no terceiro episódio, há um crescendo na forma como ela se relaciona com a personagem e que a coloca num patamar semelhante ao de Catherine Keener em Get Out, na atmosfera de um thriller eminente e um terror psicológico escondido na poker face do poder supostamente empático de Masha.
A certeza absoluta que podemos ter no final dos três primeiros episódios de Nine Perfect Strangers é que seja qual for o caminho que optem o resultado será genuinamente bom, por duas razões distintas: Porque o existencialismo vende pela identificação que criamos com as personagens e porque este género de thriller com mistério, drama peculiar e laivos de terror são o cocktail perfeito que ainda nos fazem lembrar quase detalhadamente de Us ou Get Out.
Tal como já dissemos, não é inteiramente a mesma linha de Jordan Peele mas parece aproximar-se em muito do estilo quando pensamos para além do óbvio e entramos nas entranhas da mente dos personagens e pensamos qual será o plano real de Masha para aquelas almas, é um título que quase cabe na coletânea da Blumhouse sem esquecer a estética mais cuidada e trabalhada e a narrativa um pouco mais pesada que lembra em vários pontos tramas que cabem de forma mais habitual no catálogo da HBO.
É uma junção de qualidade que faz com que todas as nossas expectativas se superem logo no primeiro capítulo com uma história que apesar de trabalhar conceitos bem pesados consegue ser maratonável no bom jeito das produções de streaming.
Quer sigam pelo lado de explorar a forma como a indústria lucra com a dor, com os trabalhadores do Tranquillum a infligirem ainda mais dor para que os tornem dependentes quer siga pela perspetiva de entregar uma justificação mais fantástica para o que ali se passa, é certo que ambas convencem e isso já diz muito sobre o argumento da série, que consegue levar-nos a equacionar dois cenários distintos sem que em nenhum momento exista algo que os deite inteiramente por terra.
Querem mistério? Está aqui algo que pode, realmente viciar. Aguardamos apenas pela solução de que tudo aquilo passe por uma releitura do purgatório e a cultura Pop possa, novamente, dar uma chapada nos criadores de Lost para mostrar como, de facto, podemos criar em cima do conceito bíblico sem parecer uma atabalhoado de conexões sem nós que os unam.
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