COMING UP | The Father [OSCARS]
Da herança de longas-metragens como The Judge ou The Wife, The Father é o drama intimista que se junta à coletânea de filmes deste género preenchendo mais uma vez a quota de histórias de família na corrida aos Oscars. Com a diferença de que aqui entramos diretamente no universo da doença num enredo que nos vai confundindo no quebra-cabeças do personagem principal mas que no final das contas nos vai obrigar a colocar no lugar de quem passa por um processo de demência. A narrativa faz um caminho bonito nesse acompanhamento do caso que retrata colocando-nos do lado de Anthony a ver as coisas pelos seus olhos para que percebamos a confusão que ele sente, para criemos teorias sobre o que vemos na mesma velocidade que ele questiona as mudanças do universo à sua volta. Somos absorvidos para dentro de uma doença e enquanto espectadores estamos constantemente perplexos e a tentar decifrar o que está para lá dos eventos, agora vamos desfazer as nossas ideias pré-concebidas e colocar-nos na pele daquele homem. Quando fazemos esse exercício entendemos todas as atitudes, toda a elevação de voz, a forma como trata os seus familiares. The Father é um manual para que a sociedade aprenda a colocar-se no lugar do outro numa consulta obrigatória que nos vai enriquecer a todos e destruir de uma vez o preconceito que existe para quem passa por esta doença. A mente é engenhosa e tem o poder de colocar em cheque todas as nossas ações, The Father é mais uma prova disso num profundo ensinamento do que é o respeito pelo outro, pela realidade alheia e um elogio ao papel dos cuidadores que, francamente, não têm a devida aclamação por parte da sociedade. É sobre tudo isto que vamos falar em mais uma edição especial do Coming Up em vésperas da entrega dos Oscars.
Logo de início vemos a preocupação de uma filha com um pai, tentando que este entenda que precisa de alguém que cuide dele e que o ajude nas tarefas do dia-a-dia enquanto ela iria continuar a sua vida depois de nos últimos anos se ter dedicado à saúde do patriarca. Naquele momento da história, sem o devido contexto que nos chegará depois a nós mas que nunca encaixará corretamente na cabeça de Anthony, a atitude aparenta ser pouco altruísta, sobretudo se o pai estivesse realmente na posição delicada que ela ia descrevendo. E é a partir desse primeiro diálogo que todo o tratamento e as criticas de Anthony para Anne ganham sentido. A partir daí desenrolam-se eventos que para quem vê são extremamente confusos, com outra pessoa a surgir do nada numa versão diferente dos factos relatados por Anne no diálogo anterior e uma nova atriz a vestir a pele de Anne, sem parecer ter ligação com a conversa anterior. A partir daí a nossa cabeça arranca numa viagem alucinante de probabilidades sobre o que pode significar tudo aquilo. Estaria aquele casal a tentar de alguma forma roubar aquele homem aproveitando-se da sua doença? Estaria ele realmente doente e aquilo era apenas uma memória? Bem, as possibilidades são imensas e a nossa mente enquanto consumidores de histórias é terreno fértil em fazer com que até a coisa mais inimaginável se torne de facto possível. Andamos às voltas nesse terreno confuso durante grande parte do filme até que entendemos que a roupa de Anne, monocromática propositadamente, e as constantes perguntas sobre as horas são as pistas para nós, espectadores, mapearmos os eventos do filme e criarmos correlações com o que de facto se está a passar em The Father. E desengane-se quem ache que o filme deveria ser mais claro na mensagem que deixa, a subtileza é criada propositadamente.
Estamos em todas as cenas sob a perspetiva da mente confusa de Anthony numa espiral em que tanto ele como nós que estamos em casa entramos em desespero por não conseguirmos entender como duas pessoas podem ter caras diferentes, como Anne diz que está casada mas vai para Paris, e mesmo que por breves momentos achemos que estamos perante dois espaços temporais diferentes, passado e presente, tudo se baralha quando surge o Paul que supostamente preenchia o papel no passado em contracena com o presente. Dá-se o click e entendemos, de vez, que estamos dentro da cabeça do personagem que está num estado de deterioração tal que já perdeu a noção da sequência lógica dos eventos, em que o tempo se traduz num simples ontem e hoje, e que até as caras já parecem desencaixadas com os nomes e as ideias que ele tem delas. Quando finalmente concluímos o estado avançado da doença torna-se quase aflitivo entender o quão desesperante deverá ser viver na mente daquele homem, num esforço constante para encaixar um puzzle cujas peças pertencem a outro. É uma lição sobre como entender um pouco mais sobre a mente de quem vive o drama, mas tal como dissemos, uma reflexão sobre o papel dos cuidadores. A confusão que a mente de Anthony cria torna completamente impossível ter uma ideia do que Anne está a fazer, até nós que estamos em casa, espectadores lúcidos, com os dados que a longa-metragem nos entrega duvidas das intenções da filha, quanto mais o pai que não consegue ter um raciocínio com principio meio e fim por a mente estar constantemente a criar-lhe novas versões da realidade. O discurso que faz sobre Anne durante a entrevista de emprego de Laura é um aperto no peito constante pela gravidade das acusações, uma mágoa profunda que destrói com palavras toda a dedicação, que não parece ter sido pouca, que lhe deu ao longo dos anos.
Uma cuidadora não dorme descansada, uma cuidadora dá-se de corpo e alma aos horários da pessoa que tem ao seu encargo, uma cuidadora vive em constante receio e sobretudo, uma cuidadora vive constantemente a assistir à pessoa a que dedica os seus dias perder a batalha e piorar de dia para dia. E é por isto que o discurso duro de Anthony tem um impacto tão grande. Anne deixou para trás o casamento, deu o seu espaço e lida diariamente com a personalidade mais grosseira do pai, também ele sem culpas pois não tem consciência de que se está a passar, numa espiral de sofrimento que cria uma empatia sobre este caso que vai muito para além da ficção. The Father é uma trama tocante, emotiva e envolvente. Na sua perspetiva educativa cede-nos o que precisamos de saber para nos guiarmos sem nos dar uma explicação alargada sobre o que acabámos de assistir, pois o intuito desta película é precisamente esse: Colocar-nos na posição do: E Se Fosse Comigo? Isto tendo em conta que temos aqui a representação de dois tipos diferentes de sofrimento em que nenhum deles é forçosamente mais suave que o outro. É engraçado entender como a semiótica é utilizada através da roupa de Anne no lugar do habitual tom sombrio e melancólico que costuma pautar a imagem dos dramas. Aqui a fase mais triste é representada pela cor azul na camisola da filha que serve de representação da tristeza da resignação de quem já não pode lutar mais para conseguir que o pai escape do destino certeiro do internamento. É o mesmo mais triste da personagem, a despedida, e com a cor da roupa conseguimos criar esse marcador que descodifica e estabelece as linhas deste filme.
No tom alto da experiência de um Anthony Hopkins que se apresenta sem margem de erro, nasce um enredo que puxa para fora as nossas emoções num embalo que contrai as nossas entranhas e entrega para o espectador uma contracena excelente com Olívia Colman, que se torna decisiva para que os alicerces de The Father sejam colocados nos devidos lugares desde o primeiro segundo. Do início ao fim e num enredo que mesmo depois de conhecido pode sempre cair em confusões, a coerência e segurança da interpretação de Anthony Hopkins é algo digno de nota e totalmente merecedora da indicação ao Oscar, apesar de esta ser uma categoria repleta de front runners. Anthony Hopkins não é novato em papéis que nos deixam rendidos ao seu talento mas é um caso raro de que repetidamente se supera em cada interpretação e nos deixa abismados a este que é um dos nomes grandes de Hollywood. Pela sua prestação memorável na pele de Anthony, o ator deveria, como é obvio ganhar um dos galardões importantes desta season de prémios mas perde impacto num ano em que as dúvidas aumentam em cada película que assistimos. Na contracena, Olívia Colman, que depois da interpretação magistral em The Crown não tem mais nada a provar dentro do seu talento, é uma candidata forte a levar para casa a estatueta e de uma forma muito meritória e que dá ainda mais respaldo a uma carreira que galopa para a tornar num dos novos nomes grandes da indústria. A sua atuação relembra em muitos pontos a interpretação de Glenn Close em The Wife, numa dedicação imensa ao outro com um paralelismo com a realidade que nos aproxima da obra de uma forma muito empática.
The Father não chega à cerimónia de entrega dos Academy Awards nos tops de favoritos a levar estatuetas para casa, mas é uma daquelas películas que quem vê vai facilmente acessar na consciência ao longo da vida quando confrontado com situações que envolvam doenças que retirem à vida das pessoas a noção plena do que está a acontecer. É consulta obrigatória, sobretudo quando falamos de uma sociedade que cada vez mais coloca os idosos em segundo plano, é um lembrete do quão frágeis podem ficar, na verdade o relato que The Father carrega é a prova da fragilidade humana e de como precisamos uns dos outros, não só nos momentos de crise mas sempre. É uma longa-metragem que acontece praticamente toda no mesmo cenário numa lógica bastante teatral que dão um impacto imediato em quem vê pelo seu discurso que é pensado para criar reações no público. Aliás, o grande ponto em que The Father difere dos grandes filmes que estão a concurso este ano é nessa proximidade impactante do texto que é muito mais vezes trabalhado desta forma nos palcos do que no grande ecrã, numa lógica de diálogos que segue a tendência da adaptação para cinema de Fences e que volta aqui a resultar na perfeição. Das seis indicações que recebeu, é muito provável que conquiste o troféu de Melhor Atriz Secundária, deixando aos apostadores a dúvida se não poderá ser um dark horse na categoria de Melhor Edição, que habitualmente não é a categoria que mais casa com produções do género drama. Mas acima de qualquer prémio, a principal vitória de The Father é a sua visão, a colocação de mensagem e a capacidade de numa perspetiva tão realista nos fazer pensar para lá da experiência do cinema, quando isso acontece não são precisos troféus, o público já ganhou e quem produz conseguiu tocar-nos onde realmente importa.
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