COMING UP | Promising Young Woman [OSCARS]
Promising Young Woman é o filme que não tem aparentemente “cara” de Oscar mas tem Carey Mulligan, uma das namoradinhas de Hollywood, como protagonista. Do paradoxo estranho que retira Carey do lugar habitual onde a colocam com papéis estereotipadas sai a mais que merecida nomeação para os Academy Awards que mesmo que não se transcreva em estatuetas já levará um grande número de pessoas a assistir a uma película que tem muita moral mas acima de tudo toca pontos frágeis que nos deviam envergonhar enquanto sociedade e que mesmo não tendo consequências tão cinematográficas quanto as desta trama, podem sim ter um impacto maior do que aquele que pintam. Um escolha que foge dos hábitos comuns da Academia com um filme que tem os instrumentos certos para se tornar numa película de culto e figurar nas prateleiras de DVDs ao lado de Gone Girl. Ainda que imbuído numa linguagem cheia de punch-lines que prendem ao ecrã e ajudam a fluir o ritmo, a verdade é que há uma leitura muito mais realista por trás de tudo isto que vale a pena ser vista e sobretudo pensada, com as consequências de atos irrefletidos a serem catalogados como “erros de adolescente” quando na verdade os erros podem ser crimes ou verdadeiras bombas atómicas nas vidas dos envolvidos. Num ajuste de contas, que parece que vai desaguar numa jornada de redenção e que depois vira o tabuleiro para nos apanhar desprevenidos, esta é um bom dark horse daqueles que podem trazer surpresas no meio das figuras grandes e surpreender nas categorias de argumento. Sabe o que temos a dizer neste arranque do especial Oscars deste ano do Coming Up.
Bom, este é um daqueles filmes que nos leva ao engano, em que acreditamos que aquilo que vamos ver é mais uma história de vingança que por muito interessante que seja já está mais que batida pelo uso exagerado que tem tido no cinema. Contudo, há um assunto muito maior por detrás que torna tudo ainda mais interessante e que muda a nossa atenção e perspetiva. No fundo, o grande ganho de Promising Young Woman é o lado eclético de conseguir tocar públicos que gostem dos filmes mais típicos de entre os nomeados dos Academy Awards, com propostas mais densas, ao mesmo tempo que pelo ritmo e a base de thriller ligeiro conseguem agradar aos que desesperam por um bom acelerador. Há tudo isso aqui. Temos por um lado uma história que se desenrola a partir de um episódio de abuso, cujo bullying desfez a vida de uma jovem, e por outro o percurso de vingança para tentar castigar todos os envolvidos no processo. A classe de Carey Mulligan é um ponto chave que torna tudo muito diferente, aliado a um bom texto que nos consegue surpreender sem perder o foco de que está a contar uma história com a qual de alguma forma algum público se pode identificar. Consegue prender-nos pela forma como atravessa as histórias de abuso numa lógica peculiar. Aquela entrada com a protagonista Cassie a ser vitima de vários episódios de possíveis abusos prende-nos a atenção, e leva-nos logo a criar teorias sobre o que vai acontecer ou sobre o estado mental desta mulher, nesse sentido é enganador, mas é também a proposta perfeita para nos convidar a entrar numa história de vingança colocando de lado as nossas expectativas de que vamos assistir só a mais um filme repetido. E ainda bem que acontece, porque não é, de todo o caso.
Mas vamos falar daquilo que realmente importa no meio de toda a trajetória da personagem, as suas motivações. Estamos na era em que a liberdade é a desculpa para os extremos. Se por um lado vivemos debaixo do guarda-chuva do politicamente correto, na outra margem temos chavões que desculpabilizam uma série de atitudes com perdões banais associados a brincadeiras ou a infantilidade e que em nenhum ponto deveriam ter caído nessa banalização sob pena de criarmos uma sociedade ainda mais tóxica. Promising Young Woman é um alerta, mesmo que não se assuma inteiramente como tal, sobre o quão doente está a sociedade e como isso é algo que perdura ao longo dos anos. A situação de abuso apresentada pelo filme não poderia ter sido melhor escolhida, tudo porque encaixa em dois pontos bem debatidos: A descupabilização do “são jovens” e a depravação das classes altas. É bom ver como a narrativa abusou nesse sentido, escolhendo um grupo de pessoas com algum peso na sociedade para representarem algo tão grave, enquanto em simultâneo apresentam o bullying como principal arma de arremesso para a destruição de uma reputação, apenas porque no alto da sua superioridade é muito mais fácil libertar de culpas quem a pessoa que é mais popular no grupo. A forma como a teia se vai estendendo ao longo do filme foi uma jogada perfeita para nos manter colados ao filme o tempo todo, e para nos fazer duvidar de tudo. Mesmo que o instinto detectivesco nos dê antes de tempos os maiores twists, a forma como somos guiados até eles não é tão clara quanto possa parecer, precisamente porque durante todo o tempo somos instigados a duvidar de tudo e todos.
Para quem acompanha a carreira de Carey Mulligan, esta Cassie é uma autentica surpresa. É tudo aquilo que nunca imaginamos Carey a fazer. Enquanto vão nascendo alguns traços da personalidade de Amy de Gone Girl ou de Love de You, há um esforço enorme do texto para a distanciar em todos os momentos do papel de vilã ou de uma justiceira sem escrúpulos que não olha a meios para conseguir a sua vingança. Até mesmo no final, caso não tivesse acontecido o que acontece no final do filme, talvez aquilo que ela nos diz que vai fazer não fosse exatamente o resultado final da sua vendetta. Além disso fugimos da matemática simples de trazermos a pessoa que foi lesada no passado para concluir a sua justiça. Isso já por si é um twist, porque torna tudo ainda mais grave. Existiu uma consequência definitiva para os atos que foram praticados. Ao mesmo tempo que serve alerta a alguns espectadores serve, ainda mais, para descredibilizar ainda mais o carácter dos personagens. É impossível ter pena. Talvez faltasse termos um frame que tornasse a morte de Nina ainda mais visual, mas também poderia trazer um lado sensacionalista que não é necessário num filme que é rico pela moral subentendida que vai passando nas entrelinhas. Quem vê Mulligan em Suffragette, An Education ou até no recente êxito The Dig, está longe de a imaginar neste papel. Mas talvez seja esta a libertação necessária da atriz para encontrar outros caminhos dentro da estagnação de papéis que lhe têm dado. Por mais que não vá conquistar nenhum Oscar, é uma justa competidora e certamente é um papel que ficará na memória coletiva da carreira da atriz, que se despe finalmente na ingenuidade que lhe têm colado a papel químico.
Contudo, e por mais que em termos de química estejam no ponto, Bo Burnham passa longe de ser um destaque positivo. Aqui não se trata nem de um problema de atuação nem do personagem ou texto, tratasse de uma questão de casting. Bo Burnham não falha no papel, mas falta-lhe algo que o faça entregar a contracena que Carey Mulligan procura. É um daqueles papéis assessórios que rapidamente se empolava nas premiações pela densidade e por estar envolvido numa produção com tantos highlights, mas não acontece porque é um tudo muito sóbrio e longe da explosão de talento da protagonista. O texto e os diálogos até vão pedindo mais do ator, mas, apesar da sua interpretação convincente e credível a ideia que fica é que ele já deu o máximo que consegue, deixando o espectador longe de criar a empatia necessária com o personagem, seja ela positiva ou negativa. O guião tem um trabalho honroso em tentar fazer dele uma pessoa de confiança, tentando criar a tal duvida que já falámos, mas parece que o próprio ator ficou com essa duvida, sem trazer algum ponto desse background para a sua interpretação. Nem mesmo no momento em que solta as últimas palavras para Cassie ou na cena final do casamento se sobressai, o que é pena porque há ali pano para mangas para nos conquistar e quem sabe dividir alguns holofotes com Carey Mulligan, não deixando que ela carregue nas costas a maioria da película e das cenas com maior impacto, que é o que deixa parecer em cenas como a da revelação final. É bonito naquela idealização de par romântico, mas isso parece ser fruto de um bom trabalho de bastidores e não propriamente de um à vontade com a proposta do papel.
Apesar de não se destacar como front runner, Promising Young Woman pode vir a surpreender naquilo que é um dos pontos mais fortes da produção: O argumento. É impossível não elogiarmos a coragem de pegar numa mecânica que já aparenta estar esgotada e espremê-la ao ponto de a tornar em algo verdadeiramente diferente e sobretudo, muito bom. Não é brilhante em esconder o seu jogo, sobretudo na questão de Ryan, porque aquela monstra idílica de perfeição que nos passa no ecrã não cola com a premissa do filme, mas tem um grande trunfo do seu lado, o facto de ser tão bem construída que mesmo sabendo o caminho que vai seguir nos conseguir agarrar e manter curiosos. A empatia que falta a Ryan é ganha na forma como cada ponto nos é contado, e a jornada de justiça é arquitetada. A sequência em que Cassie vai escolhendo formas de fazer cada um passar por situações semelhantes às que ignoraram é simplesmente perfeita, e é de onde surge a maior moral e o murro no estômago que o filme andou a velar durante a introdução. É sobretudo elegante por conseguir fazer passar a sua mensagem são nada de gráfico, mantendo encolhidos aqueles que têm culpa e o espectador que sofre e vergonha alheia, sem ser preciso dizer-nos: “O que aconteceu foi isto” e reagiram com “isto”. O fecho do enredo pode desvirtuar um pouco da lógica mais realista que foi sendo desenhada, mas foi a escolha acertada para dar aquela ação extra que dá a Promising Young Woman o selo de filme eclético. No fundo, o mais importante a retirar e os melhores momentos da longa-metragem não são o final, e apesar de isto poder parecer algo negativo não é, é só a prova de que os envolvidos no projeto tinham noção do trabalho que tinham em mãos. No final das contas, o resultado é uma história empolgante, com muita moral e que traz à tona discussões que deviam ser muito mais debatidas do que são na realidade. É o filme perfeito para mostrar a adolescentes e mostrar-lhes a necessidade de serem responsáveis pelos seus atos e que o karma pode ser muito mais do que um conceito do espiritismo.
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