COMING UP | It’s a Sin
Com o mundo a pedir cada vez mais por representatividade, ao mesmo tempo que uma pandemia vira as nossas vidas ao contrário, It’s a Sin é a série que agarra um pouco das duas mensagens numa combinação brilhante do Channel 4 que em boa hora chegou à HBO Portugal. A viagem ao passado serve o argumento, mas não nos prende num ciclo, porque It’s a Sin é muito mais do que uma série que fala sobre SIDA, assim como é muito mais que uma trama sobre representatividade sexual, racial ou sobre igualdade de oportunidades. Na verdade é um murro no estômago que vem dizer-se que a máxima de “vive o dia como se fosse o último” não é apenas um bordão bonito para publicar nas redes sociais, mas sim algo que deve ser levado a sério diariamente. Por mais que os protagonistas tenham elevado isto ao expoente mais elevado, a mensagem está lá, sobre vivermos os afetos ao máximo, não os físicos que dão prazer, mas os que vincam na nossa vida a aquilo que de melhor levamos do mundo. Numa bonita canção de amizade, It’s a Sin, fala-nos sobre como a diferença aproxima mais do que afasta e de como a felicidade está em cada uma das nossas escolhas, enquanto as pudermos fazer. Enquanto falamos de liberdade somos envolvidos numa narrativa que não se coíbe de ter voz, de educar, de ser estridente na mesma medida em que é tolerante. Com os apelos certos para nos envolver do primeiro ao último capítulo, It’s a Sin é um sucesso que ficará na história e que, daqui a alguns anos ainda vamos poder aconselhar. Do elenco ao tom, tudo flui na nova aposta da Channel 4 que se falhar alguma premiação entrará na lista de injustiçadas, por na origem não ter a plataforma mais mainstream. Vamos fugir das regras e deixar-nos embalar com Ritchie, Ash, Roscoe, Jill e Clive, porque podemos prometer que vai valer a pena! Vem connosco em mais uma edição do Coming Up.
Vamos arrancar pela parte verídica da história, a disseminação do vírus da SIDA, que na sua história tem pontos em que só nos tempos estranhos, mas atuais, que vivemos temos capacidade para nos deixar relacionar com aquele universo onde reina a incerteza de não sabermos o que nos pode deixar doentes. O tema não é novo, mas o embrulho é, e propositadamente ou não, o embalo da atualidade faz-nos prestar mais atenção a cada pormenor. Desde a falta de informação, na medicina em parte, mas também pela leviandade com que os países geriram a crise, sacudindo a água do capote enquanto a má sorte não lhes bate à porta, tudo isto é representado com um cuidado e detalhe que nos aproxima, nos ensina mas não toma conta da narrativa, pelo menos até um certo ponto. Dos negacionistas, até ao velho chavão de que é tudo uma jogada de marketing, os paralelismos são tantos que choca ainda mais pensar que transposto para os dias de hoje continuam a existir pessoas que conspiram da mesma forma. No fundo, e de forma indireta, It’s a Sin apresenta-nos uma tese sociológica sobre como o ser humano reage a uma crise quando se vê privado de algum tipo de liberdade. E, não obstante disso, mostra-nos como somos egoístas e como seguimos nas nossas vidas o principio de São Tomé e o seu: “Ver para Crer”. A cena em que Ritchie aponta ao público todos os argumentos pelos quais não se deixa convencer sobre o vírus é um dos momentos mais maravilhosos da série, não pelo que defende mas por no subtexto quebrar a quarta parede para dar ao público um alerta reverso sobre o nosso comportamento, pois todos nós sabemos como acaba a história do vírus que “só afeta os gays”. Isto é um dos trunfos de ter uma boa direção, saber tirar o melhor proveito do roteiro, e numa fase como a que estamos a passar, isto sim é um exemplo do tipo de entretenimento que mais precisamos. É a ficção a estabelecer uma relação de respeito com o espectador, sabem que vamos entender a moral de cada palavra.
À parte disso, vale ressaltar o cuidado, a desconfiança, o medo que paira no ar ao longo de várias partes da trama. E neste apontamento não podemos ignorar a cena de Jill com Glória, desde a primeira reação ao desconhecido, em que vemos a personagem ficar atónita da mesma forma que ficamos quando ouvimos pela primeira vez que há alguém que conhecemos que está infetado com COVID-19, mas não é o único destaque. Toda a sequência com a caneca foi mais enlace perfeito de uma boa relação entre argumento e realização, a sequência é tão estranhamente próxima de nós neste momento que mesmo estando em casa no nosso sofá a assistirmos à série, parece que temos a compulsão de fazer aquilo que Jill faz, num desempenho bastante coerente e subtil da atriz Lydia West, mas lá chegaremos. O outro destaque vai novamente para Ritchie e toda a sua jornada a partir da segunda metade. Desde o momento em que sai da porta recusando-se a saber o resultado do teste, numa atitude egoísta mas que tenta preservar os seus sonhos, porque naquele momento, ele ainda não está preparado para saber o que está escrito na análise, até à fase em que ele decide absorver todo o tipo de informação numa época em que, recordamos, não havia um terço dos meios que temos hoje em dia, mas onde, curiosamente, também proliferavam as fake news e a um ritmo quase tão galopante quanto a informação real. Há um ponto que muda, e, também ele, é um fator importante, a forma como a sociedade se olha entre si. E este o caminho para abrirmos espaço para outro grande tema de uma série que tem tantos e tão bem explorados arcos que se torna difícil tocar em todos.
Mas não há como fugir à representatividade, sobretudo na luta pela igualdade de Direitos para quem tem uma orientação sexual que não encaixa no conservadorismo de uma sociedade dos anos sessenta ou setenta. Juntar toda a segregação a uma doença que, à luz dos interesse da sociedade que não se preocupou em procurar justificações antes de julgar, afetava apenas essa minoria, é a explosão perfeita para entrarmos num circuito de marginalização de direitos em que todos têm espaço para criar a sua anarquia privada. Todo o arco de Clive serve de exemplo à falta de senso. Do abuso que orientou toda a vida sexual do jovem até ao seu destino final, Clive foi o mártir escolhido pela série para chocar o público que ainda não se tinha encaixado no ambiente criado pela trama até então. Já agora, mesmo que sejam universos completamente diferentes, a morte de Clive remete muito para o impacto que tivemos quando George O’Malley deixou Grey’s Anatomy. São dois coqueluches que cada uma das produções nos ensinou a amar e que no final têm tragédias imprevisíveis como desfecho. No caso de Clive isso é ainda mais mascarado pelo argumento, que nos vai indicando coisas contrárias para depois nos surpreender, e bem, com o plot twist que dá um novo fôlego à série. Foi o click perfeito para nós e os personagens sairmos da nossa zona de conforto, e quando isto acontece em simultâneo é porque a magia da ficção está a cumprir o seu papel na perfeição. Temos quatro protagonistas que são homossexuais, mas há a preocupação de não compartimentar tudo no mesmo lote, há certos estereótipos, mas até os estereótipos têm o seu lado real. It’s a Sin é quase uma união entre a excelente Looking, essa sim original da HBO, e The Normal Heart, que pela sua componente mais séria e pela narrativa estar compactada na duração de uma longa-metragem não tem tantos ângulos como nesta série, mas no conteúdo tocam-se muitas vezes, e com resultados positivos para os dois lados.
Seja feita uma vénia a Olly Alexander, que sem desprimor para o restante elenco tem um magnetismo gigantesco que o faz roubar todas as cenas em que entra sem deixar com a sua atuação de justificar cada uma das escolhas erradas do seu personagem, e sendo um ativo advogado de defesa através da sua interpretação das mudanças de opinião do seu Ritchie. Agarra-nos desde o primeiro minuto com a transparência da ingenuidade de um rapaz que está a viver a liberdade de ser quem é pela primeira vez, com todos os abusos e excessos que isso provoca. Porém, em It’s a Sin, não há personagens planas, e o ator soube acompanhar isso em todos os períodos da vida do seu Ritchie, amadurecendo a sua interpretação de episódio em episódio até à apoteose final onde está simplesmente monstruoso. O trabalho não é individual e claro que para tudo isto contribuiu o verdadeiro espirito de companheirismo que se sente cada vez que o núcleo principal se reúne, mas quer no ecrã quanto fora parece ser Olly Alexander a puxar as cordas que fazem a harmonia de It’s a Sin resultar tão bem. A Omari Douglas caiu-lhe no colo um dos desafios mais difíceis dos personagens da série, Rescoe traz na bagagem a responsabilidade de representar estilo, sem deixar o exagero envenenar a verdade de cada fala, e sem dúvida que o resultado não poderia ser melhor. Há momentos em que nos lembra o Lafayette de True Blood, outros em que está mais próximo de Augustín de Looking, mas sem dúvida fez mais pela liberdade de se expressar como quer do que Jorge de Katy Keene, por exemplo. De reparar que It’s a Sin não fez o percurso que a maiorias das séries com temas LGBTQ+ tende a fazer, de colocar um personagem gay não assumido que claramente tem uma postura dentro dos padrões convencionais e datados da masculinidade, fê-lo em alguns pontos para servir de palco a outras temáticas, mas nunca com o destaque de fazer disso um assunto. O foco foi outro, e é só mais um ponto a somar à ousadia certeira dos criadores do show.
It’s a Sin é uma trama sobre amizade, sobre como cada um de nós vai construindo a nossa família sem a ditadura do sangue, é um enredo sobre ser diferente sem se esconder na fraqueza ou se rebaixar aos que se intitulam de maioria, é uma série sobre amor, e como este se vai construindo de formas estranhas para chegar a um bom fim, é sobre a falta de aceitação de quem projectou expectativas e sonhos ignorando os sinais, e é sobre a liberdade de ser, de agir e pensar, de sorrir e abusar do Carpe Diem. Tudo isto com uma doença a servir de fio condutor, num banho de realidade que nos lembra a todos sobre o quão egoístas podemos ser, enquanto nos educa sobre o passado do mundo, para nos fazer ganhar a confiança de que o futuro não está tão longe como imaginamos. Não há um verdadeiro final feliz, mesmo quando enchemos o seu corpo de esperança nos últimos minutos do capitulo final desta temporada, mas há uma razão para isso. It’s a Sin é uma odisseia de esperança em todos os pontos em que tocou, excepto na que toca à doença, e porquê? Porque no fundo, a saúde é o único fator que não está inteiramente à nossa disposição para ser alterada. Por mais dor que nos cause o encerramento das histórias de Clive ou Ritchie, a moral ficou lá, e ainda bem que de um momento para o outro o agente Deus Ex Machina não apareceu, porque tornou tudo ainda mais próximo do que imaginamos que tenha acontecido na época. Merece o nosso aplauso, e talvez pela primeira vez numa análise do Coming Up, sem o desejo de uma continuação que possa desfazer o argumento tão amarrado pelos detalhes quanto este. It’s a Sin é gigante e muito mais e entra para o top de melhores séries de 2021, que em janeiro já promete bons sucessos.
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