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Conto | "Estávamos melhor vivos: um diálogo entre dois enterrados"

Estávamos melhor vivos: um diálogo entre dois enterrados
de Luís G. Rodrigues

- Ontem a minha mulher veio aqui deixar-me flores.
- Como sabe que era a sua mulher?
- Aquela brutidade é ímpar, caro colega, nunca me apercebi de ninguém a pousar coisas com tanta violência.
- Certo, certo.
- Você foi casado?
- Não, não.
- Filhos?
- Já que não fiz a primeira, não me parecia bem fazer a segunda.
- Bem visto.
- Costumam vir por-lhe flores?
- Por vezes vem aí um amigo, um velho amigo que andou na tropa comigo.
- Ah! Era da tropa, deve ter muitos camaradas.
- Nem por isso, foi expulso.
- Então?
- Bem – quer dizer – não fui bem expulso. Fugi.
- Isso é diferente.
- É.
- Gosta de estar por aqui?
- Aqui? Morto? Se calhar preferia `tar vivo.
- Também eu, mas só para a ver outra vez.
- A sua esposa?
- Ora.
- De que é que se lembra, para além da brutidade?
- Olhe, por acaso, lembro-me de uma coisa que ela me disse antes de sequer termos casado: “Por vezes estou tão bem aqui que me esqueço que amanhã é outro dia”. Sempre teve jeito para as palavras e eu para ouvir.
- Mas olhe que a minha memória não anda boa. É uma sorte lembrar-me da minha mulher.
- A minha também não anda nada famosa. Como se chama?
- Já não me lembro.
- De onde é?
- `Tá certo, não me lembro do meu nome e ia-me lembrar de onde sou.
- Podia lembrar-se, companheiro, se se lembra da sua mulher.
- É. Pelos vistos as coisas belas são as que não se esquecem.
- Também foi a sua mulher que disse isso? Vou chamar-lhe Casado porque já foi casado.
- Ainda bem que esclareceu a escolha, estava quase a não perceber a piada.
- Com os mortos não se brinca, nunca ouviu dizer?
- Ah! Vejo que tem sentido de humor.
- Por favor, não se engane – os mortos não têm nada.
- Ora essa, então não temos: eu tenho a minha família e você tem os seus amigos.
- Eles é que nos têm a nós.
- Que deprimente, homem.
- É o que lhe digo: estavámos melhor vivos.
- O que é estar vivo?
- Tenho a certeza que não é estar onde estamos. E para além disso, não me diga que está a tentar filosofar debaixo de terra. Isso é coisa para os vivos, os mortos não tem filosofias: não lhes serve de nada.
- Pois, talvez não.
- Vá dormir.
- Sim, até porque há mais que fazer por aqui.

Fim.

Texto: Luís G. Rodrigues
Imagem: “The art of conversation”, René Magritte