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COMING UP | SOUL

 

Na primeira viagem a sério ao tema do existencialismo depois de Inside Out, a Pixar torna a não falhar e transporta-nos para uma espiral de questões sobre o propósito da nossa vida, que voltam a ter a indelével marca do estúdio que já nos fez chorar tantas vezes. Soul tem corpo e alma, com um fio condutor que nos deixa embrenhados na história do primeiro ao último segundo de filme. Mesmo com todas as expectativas que o selo Pixar traz, Soul consegue surpreender por se aventurar numa narrativa com um subtexto muito mais adulto, mas que entretém os mais novos. É a dupla experiência que no passado a registou como marca de sucesso e que aqui se eleva por outros caminhos. Um protagonista carismático, uma injeção de filosofia, questões aparentemente triviais, mas que diariamente passam pela cabeça de cada um de nós, e, mais uma vez, os sonhos e a vontade de conquistar algo, estes são os pilares desta longa-metragem que chega no timing certo para casar com um ano em que todos nós nos questionamos em algum ponto sobre como seria o nosso futuro. Com uma animação soberba que nos transporta imediatamente para aquela realidade, Soul é um drama com uma carga muito mais intensa do que muitos romances que somam milhares de visualizações. Mas, mais importante que isso é a mensagem, a moral, porque ela existe e é bastante importante que as crianças a aprendam tão cedo quanto possível. Vamos ensinar valores às crianças através da ficção, mas será que não somos nós, os adultos, que precisamos de aprender um pouco mais com as películas da Pixar? Vamos contar-te tudo em mais uma edição do Coming Up!

Temos dois universos distintos em Soul: A vida e a morte. Antes de nos debruçarmos pela profundidade dos conceitos que o filme explora vale a pena valorizar as representações que esta nova aventura nos traz. Por um lado, temos um protagonista que está claramente insatisfeito com a sua vida profissional, mas que mais uma vez foge dos padrões. Ele tem um sonho, e nem a estabilidade de um emprego parece conseguir travar a sua vontade de ser feliz. Contudo, logo nos primeiros diálogos entendemos que os autores não nos tentam contar esta realidade com uma varinha de condão, coisas como Seguros de Saúde ou Reforma não terão, certamente, impacto nos ouvidos das crianças, mas chamam a atenção dos mais crescidos e fazem logo com que olhemos com outros olhos para aquela história. Ter começado por aí foi o gancho perfeito para fazer entender que esta trama é uma animação, mas poderia muito bem ser contada com atores de carne e osso. Além disto, o texto questiona constantemente o público e faz-nos pensar até que ponto seremos tão felizes em abdicar de tudo? Ficamos em ponto de rebuçado porque inevitavelmente Soul tem a capacidade de nos arrastar para dentro da discussão e nos colocar nos sapatos de Joe em todos os instantes. Mas vamos saltar para o outro elemento: O além. Depois da devida saudação pelo design e pela forma como foi apresentada a versão do filme do sobre o que é o pré-natal, em que se denota cuidado para não encaixar credos, há momentos em que sentimos que estamos no mesmo contexto criado em Mr. Nobody com a linguagem mais subtil e muito mais explicativa do que o projeto de Jaco Van Dormael, mas com a mesma essência existencialista.

Falar sobre Psicologia e Filosofia quando o público alvo são crianças é um desafio difícil ao alcance de poucos. A Pixar já tinha começado a quebrar o gelo com Inside Out e agora fez a parede desmoronar introduzindo figuras que todos nós conhecemos nas linhas de texto mais cómicas que poderão surtir efeito na hora de os ensinar sobre aquelas figuras históricas. A genialidade com que se usa Copérnico, por exemplo, para descrever uma personagem usando a sua própria teoria como pano de fundo, já nos deixam com um sorriso na cara. É o mítico aprender é divertido, numa lógica que só a Pixar sabe fazer, porque, mais uma vez toca nos dois grupos de audiência. Falar de medo e motivação sem cair no extremo da desvalorização ou no perigo de passar uma imagem demasiado branda, ocupa uma grande parte do filme. E não há nada que nos deixe mais embevecidos nesta experiência do que ver a 22 a viver cada coisa pela primeira vez, é o epicurismo em estado puro, o Carpe Diem do Dead Poets Society, tudo isto a acontecer em simultâneo com as outras questões que falamos anteriormente e sem se perder ou desacelerar uma única vez. Soul não nos deixa perder o foco, seja por termos sempre os sons Jazz a embalar-nos seja porque em cada frame adiciona um pormenor importante para o decorrer da história e que enriquece ainda mais este universo, dando uma verdadeira aula sobre storytelling com uma narrativa que não se estende para ganhar tempo de ecrã e que consegue condensar várias dezenas de mensagens, diferentes e importantes, em uma hora e meia de filme.

Quando o principal mote da história acontece, o acidente, fica, para quem vê, uma sensação de incerteza sobre como é que a maestria da Pixar conseguiria dar a volta e entregar cor mesmo estando a falar de morte. Em Coco já o tinha feito, mas num contexto muito ligado a tradicionalismos que aqui seriam impossíveis de adaptar. Na escolha por falar sobre a morte, Soul decidiu falar sobre a vida e surpreender-nos com a visão da longa-metragem sobre o que seria o local em que ficam os bebés antes de encarnarem no corpo de uma criança. A escolha surpreende o público, e conseguiu deixar-nos num ponto bastante confortável ao falar de algo tão feliz quanto o nascimento de uma criança. Mesmo assim, 22 era o contraponto que precisávamos para que a história conseguisse manter o seu lado mais realista da introdução. Por mais que não possamos falar de realismo quando nos aventuramos por caminhos como o “além”, podemos sim referir as causas, essas sim, bem verdadeiras e com as quais nos confrontamos todos os dias. No meio do You Seminar fazem-se as fórmulas matemáticas que definem a personalidade, num conjunto de selos que lembra muito os jogos dos Sims. Mas dentro daquele contexto há pormenor valioso, a Chama, aquilo que nos dará alento, a forma interior que nos fará ter um foco e um objetivo. E é aqui que Soul começa a tentar desvendar a resposta a uma questão que já todos fizemos alguma vez: Qual é a nossa Chama? Qual é a nossa vocação? Mesmo que no final das contas a resposta não seja algo taxativo, até porque nunca poderia ser, dado que essa chama é um conceito demasiado abstrato, é interessante ver as voltas que o texto deu com Joe para nos provar que se pensarmos bem, a nossa Chama não é algo estático, não é um objetivo, é viver cada dia e deixar-nos surpreender. Até porque um objetivo, depois de cumprido mais cedo ou mais tarde será substituído por outro, e alguns até acabam esquecidos.

Nem tudo é perfeito, há algumas falhas em Soul que apesar de o deixarem no Top de melhores filmes da Pixar ainda não consegue destronar Toy Story, Inside Out ou Coco. Por mais que no grosso do argumento a ponte entre a pequenada e os adultos seja feita, há muitos momentos em que os temas abordados são demasiado elaborados para um público infantil, e isso pode levá-los a fazer perguntas, sim, mas também os pode desconectar das mensagens importantes que o texto tem para oferecer. No encerramento da película, por exemplo, enquanto a maioria dos adultos facilmente já estará lavado em lágrimas, as crianças ainda não terão entendido a moral da história. Falta alguma clareza no discurso final do protagonista para preencher os espaços em branco que ficam para a audiência que não está preparada, ainda, para desconstruir tudo o que está nas entrelinhas. Além disso, há uma solução de argumento que foi colocada sem necessidade e que causa alguma confusão no final. Lisa, o suposto interesse amoroso de Joe é referida duas vezes em momentos distintos do filme, mas nunca dá as caras e nem sequer há uma menção sobre uma possível aproximação no futuro. Se o objetivo era dar uma nova dimensão há vida de Joe, então talvez não fosse necessário entregar-lhe um nome, isto caso não se confirme uma outra teoria. E se o final de Soul já tiver sido pré-planeado para uma futura continuação? Além de Lisa, não vimos uma única imagem de 22 como humana, o que é um tanto ou quanto suspeito. Depois de um filme inteiro a acompanhar o crescimento da personagem não finalizar com uma imagem sua na Terra só faz crescer as teorias de que terá um projeto a solo no futuro, talvez um novo conteúdo para o Disney+?

Soul é o laboratório da vida, numa mistura de vários aspetos que constroem a nossa personalidade embrulhada com uma produção excelente e um humor que realmente nos faz rir. Sem surpresas 22 é a melhor personagem do filme e rouba a cena e o tema para si. Tem muitos momentos em que nos lembra bastante da Joy de Inside Out ou do Ian de Onward. Na verdade, se pararmos para pensar um pouco, todas duplas do estúdio se formam com dois polos opostos que se cruzam em co dependência, mas normalmente a Pixar dá sempre mais destaque ao lado mais negativista, aqui, mesmo que sem querer, a partir do meio da produção, é o lado positivo que ganha, com 22 a ocupar grande parte do tempo do filme e sempre com a alegria de quem experimenta tudo a cada segundo e adora. Entre a representatividade e a construção de uma narrativa única rica em pormenores e carregada com personalidade sem perder o selo family&friendly da Disney, a nova aposta da Pixar faz esquecer o road movie anterior, Onward, que apesar de bom passa longe de ser tão memorável como a epopeia de Joe e 22. O Disney+ é um dos grandes vencedores num ano em que a indústria parou e consegue garantir mais um projeto de qualidade que faz valer cada cêntimo que investimos para ter acesso ao serviço de streaming. O Jazz é um ótimo complemento e depois deste filme deixamos a sugestão de saltarmos para outro serviço e continuarmos com os mesmos tons na banda sonora com Ma Reiney’s Black Bottom, em comum, as duas longas-metragens, têm a música e leve gostinho de sucessos nas próximas premiações.