COMING UP | Esperança
Não estamos a falar de apenas mais uma série, chega até a ser um erro referirmo-nos assim à mais recente produção da OPTO SIC. Esperança é uma viagem delicada, com sabor a saudade e afeto, ao íntimo de cada família. Num ano atribulado em que família ganhou um significado ainda maior para todos nós, chega a história que nos faz derreter e nos lembra do quão importantes são as pessoas que se colocam no nosso caminho. É impossível não criarmos uma ligação, é ainda mais impossível desligarmo-nos da interpretação magistral de César Mourão. Mas por entre o cuidado da técnica e o balanço do texto, nasce uma história com identidade, que traz ao peito o peso daquilo que os antigos nos contam, as peripécias dos avós, a teimosia e as guerras de família que tornam cada uma única. É Natal, e Esperança é o presente que nem sabíamos que tínhamos debaixo da árvore. Aquilo que nos foi vendido como comédia, tornou-se numa trama quase documental que carrega no título aquilo que todos precisamos, a Esperança de podermos abraçar como antes, de estar à volta de uma mesa a preocupar-nos com as discussões triviais que nunca dão em nada, a preocupação sobre o que ter na mesa da consoada, e tantas outras coisas. Mais do que entreter, Esperança chega na altura certa para aconchegar as famílias nesta quadra e depois dos primeiros capítulos, não há ninguém que não tenha adotado a avó Esperança como novo membro da família. É qualidade, é saudade e não é bom, é muito bom! Vamos dizer-te porquê nesta edição do Coming Up.
Vamos do início. Esperança é filmada com o
cuidado necessário para parecer que nós estamos a cruzar com esta mulher numa
rua qualquer. Com a melodia de António Zambujo de fundo, que tal como nos seus
trabalhos a solo, consegue trazer para esta trama e para a canção de genérico a
empatia de um povo. É estranho imaginar que um dos mais aclamados comediantes
nacionais vestido de mulher consegue, no final das contas, fazer-nos chorar.
Por mais rezingona que Esperança seja, é uma daquelas velhotas por quem nos
encantamos desde o primeiro minuto e com quem é impossível não rirmos, contudo,
esta não é uma caricatura. No primeiro diálogo achamos que estamos a entrar
novamente num sketch humorístico, mas o improviso do texto fica-se por
aí e a partir desse ponto não conseguimos ver mais nada naquela mulher do que a
imagem dos nossos avós, numa empatia absurda e rara em produtos de ficção em
que realmente o que vemos ganha contornos de credibilidade de tal tamanho que
nos esquecemos que estamos a ver uma série. Sim há todo o pequeno drama
improvável da bengala a acontecer em pano de fundo, mas vamos lá pensar: Não há
nenhuma história inusitada para contar quando falamos sobre os nossos
familiares mais próximos? É isso que nos torna tão únicos, e faz com que seja
sentida a verdadeira definição de família. É essa a essência que é captada
desde o primeiro segundo, com a Esperança a ser aquela mulher que nos seus anos
de vida já tem experiência suficiente para dizer tudo o que pensa sobre tudo e
todos porque já se cansou de ter filtros, sem perder a boa disposição e ainda
com a força de vontade de querer fazer tudo sozinha.
E as mensagens sucedem-se, o texto fala de um
conjunto gigantesco de situações da vida de qualquer pessoa que lide de perto
com um idoso sem se atabalhoar e com a fluidez suficiente de não nos fazer
sentir a passagem de tempo. Se somos agarrados pela afeição? Em grande parte,
somos, mas os diálogos construídos com sapiência suficiente para irem além dos
clichês dos “velhos tempos” e “no meu tempo”, e trazerem para a atualidade da
ficção uma representação de uma idosa, que por mais idade que tenha, ainda é
uma pessoa como todas as outras e não se deixa definir apenas por um número. Há
um doseamento excelente na representação desta faixa etária. Não caímos no
extremo de ir para o que é radical demais, mas também não se entra pelo caminho
da pena ou da compaixão. O texto é mais elaborado que isso e é isso que o torna
tão próximo das nossas vivências, esse saber quando se tem de sair fora de
caixa e quando é necessário ser terra a terra. É o risco controlado, que
consegue ser a melhor transcrição do que é, de facto, a grande maioria das
pessoas que estão na terceira idade. O texto parece agiganta-se em cada momento
mais dramático, mesmo que os tempos de comédia já sejam perfeitos, com o humor
típico de César Mourão a estar vincado em alguns momentos, mas a não deixar
sobressair-se para lá da construção da personagem. Em cada toque mais pesado
dos diálogos, como os que acontecem durante a ceia de Natal, em que se mostra
bem o quão importantes são as tradições para esta matriarca, não é só o ritmo e
espelho de realidade que está lá na quantidade certa, é, também a forma como a
câmara e banda sonora constroem um quadro em torno da atuação de Mourão, até um
simples fechar da porta à chave ganha um impulso, um significado. Em Esperança
há pouco ou nada de banal.
A escolha do
elenco acrescenta ainda mais à aposta arrojada de Esperança, numa fuga
ao lugar comum das mesmas figuras que já firmaram sucesso que traduz ainda mais
a forma documental como a narrativa se desenrola. A diferença só soma ao
resultado final e é tão bom ver que há tanto talento desconhecido pronto a ser
lançado. Há algo inegável neste desenvolvimento, os personagens conseguem
transmitir verdade e a emoção do que é uma família logo que entram em cena. Se
muitas das vezes optamos por assistir a uma série por ter o ator X ou Y, em Esperança
ganhamos pela improbabilidade com interpretações que não são simplesmente fruto
do talento dos atores ou do excelente trabalho da equipa de autores, mas
sobretudo de uma entrega com amor e carinho, o que se traduz numa linguagem
muito mais próxima das nossas vidas e que dá a todos uma dimensão muito mais
profunda do que aquilo que a sinopse nos deixa antever. Mas há dois destaques
que não podemos deixar de parte: Valerie Braddell e Leonora Carvalho, e por
motivos distintos. Desconhecida da maioria do público, Valerie é uma descoberta
desta produção. Numa fase da vida em que poucos atores conquistam papéis de destaque
em séries ou novelas, a atriz consegue ser a mais recente cara a fugir dos
patrões e mesmo com uma carreira aclamada no teatro, para a grande parte da
audiência é uma estreia e é bom ver uma cara nova num papel tão humano e com
tanto potencial, um aplauso será sempre pouco para a equipa que a escolheu para
dar vida a Hermínia, sem esquecer a brilhante contracena com César Mourão. Já
Leonora é provavelmente a revelação de Esperança! Sem trabalhos
associados que conheçamos, a atriz faz-nos viajar às tiradas fantásticas de
Valéria Carvalho no clássico Não Há Pai com um trabalho de cena de
grande generosidade com César Mourão, que eleva cada momento de humor a algo
muito mais conceptual do que o que estamos habituados. Leonora e a sua Paulina
conquistaram e parecem ter um caminho enorme à sua frente, recheada de cenas
que levam qualquer um às lágrimas de tanto rir.
Quando saíram imagens de Chris Hemsworth e da sua transformação incrível para In The Heart Of The See poucos foram os que não quiseram ver o filme, isto se ignorarmos nomes como Christian Bale, Tom Hanks, Daniel Day-Lewis ou Charlize Theron. Foram estas mudanças físicas que muitas das vezes deram aos intérpretes Oscars, e que até hoje fazem parte história da academia. A caracterização não é esquecida e temos o exemplo de Brad Pitt em The Curious Case of Benjamin Button, no Brasil temos Paulo Gustavo na trilogia A Minha Mãe É Uma Peça, por cá Joaquim Monchique ou Maria Rueff são provavelmente as únicas figuras que tiveram a coragem de se despojar da sua forma física e do género para irem um pouco mais além, mas mesmo assim não saíram da caricatura. Tudo isto serve para louvar ainda mais a caracterização e a entrega sem limites de César Mourão à sua Esperança, num exemplo claro de que interpretar um personagem é fazê-lo de corpo e alma, e quando assim é não há padrões ou definições, existe simplesmente a arte. Para quem tinha dúvidas ou esteve pouco atento, César Mourão é um dos nossos gigantes, a D. Esperança será, provavelmente, um dos seus papéis de referência até aos últimos dias da sua carreira. Porquê? Porque dizer que está brilhante é desprezar a magia e assertividade com que diz cada linha de texto, numa noção de conceitos de fala ou de trejeitos que no nosso imaginário parece exclusiva às nossas avós. César não caricatura, César criou uma figura tão empática que nos retira da realidade de estar a ser interpretada por um homem. E enquanto nos traços de comédia até aparenta ser algo mais fácil, nos momentos mais densos, como o monólogo final do primeiro episódio, a atuação é um portento digno de poucos. Se noutros cantos do mundo se cai aos pés de intérpretes com esta dimensão, por cá, César Mourão não merece nada menos que isso. Seria injusto ignorá-lo!
Esperança é uma série que nos arrebata e que anda em bumerangue constante, acertando-nos diretamente no coração como poucos
argumentos atualmente conseguem. O objetivo foi fugir das normas e padrões e
não foi simplesmente alcançado, foi conquistado com maestria. Mas vamos
permitir-nos deixar de lado o nosso ego de jovens e pensar num público mais
velho. Aos nossos avós, Esperança dá a representatividade, dá o alento e
apela à emoção, com a estreia a acontecer na altura certa em que todos
precisamos de uma D. Esperança nas nossas vidas, seja para os mais adultos
aquecerem o coração durante esta quadra que será vivida de forma drasticamente
diferente do habitual por força das circunstâncias seja para os mais jovens que
querem matar saudades dos tempos em que o tema principal destes dias era o
sítio em que iam passar a Consoada regada com as histórias que já ouvimos
dezenas de vezes mas que não deixam de nos fazer rir porque são contadas por
alguém tão especial quanto os nossos avós. Este é um presente de Natal que
assenta na perfeição no nosso sapatinho e nos faz rir e chorar na mesma medida,
com uma fórmula que nem sabíamos que precisávamos de ter no universo do streaming.
Devemos um obrigado gigante a César Mourão, a Miguel Araújo, ao Marco Paiva, à
Leonora Carvalho, à Valerie Braddell, à Eva Tecedeiro e sobretudo a Pedro
Varela, obrigado por terem dado um pouco mais de cor a um Natal cinzento, agora
que venham mais capítulos com amor e mais trapalhices, porque a D. Esperança
ainda agora nos começou a conquistar.
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