COMING UP | The Trial of Chicago 7 [OSCARS]
Continuamos
no tom sério. E porquê? Porque é impossível fugirmos da nova longa-metragem da
Netflix. Numa fase em que a liberdade ganha novos contornos e em que se discute
a forma como a política interage nas vidas de todos nós, o serviço de streaming
volta a acertar no timing mostrando um mau exemplo da nossa
história. Está longe de ser o mesmo tipo de situação que vivemos atualmente,
mas a verdade é que é possível estabelecer um paralelo. Falamos muito de liberdade,
mas ligamos, a maioria de nós, muito pouco aos nomes que fizeram parte da luta
para que hoje possamos reclamar e valorizar a liberdade como a conhecemos. É
mais um filme planeado ao milímetro para levar o nome da Netflix para as
premiações? É. Mas também é uma forma diferente de contar um pouco mais da
história, também é um método diferente de nos envolver numa narrativa que tem
mais ângulos do que podemos imaginar. A liberdade tem muito que se lhe diga e
tem muitas eras por detrás a construírem-na. Na equação que junta liberdade,
justiça e política, The Trial of Chicago 7 é a resposta perfeita numa
autêntica montanha russa de emoções. Há para todos os gostos desde a raiva ao
riso, com interpretações de luxo e um argumento desenhado com as pinças que
fizeram as grandes histórias de Hollywood. Desfaz-se cada vez mais o
estereótipo do que são filmes de cinema e streaming, e diluíram-se mais
uma vez as barreiras entre o digital e o Oscars. The Trial of Chicago
7 é o lado verídico na ponta do icebergue sobre o que é de facto a
liberdade de agir e reagir, de pensar e sobretudo, uma canção de justiça.
Ao fim de dez minutos de filme já estamos tão
absorvidos pela história que se torna impossível não querer saber mais sobre
aqueles homens. As figuras que nos são descritas são fascinantes pelas suas diferenças,
mas ao mesmo tempo fazem-nos parar para pensar de que forma é que todos se
interligar. É um conjunto tão estranho que se não nos dissessem que existem
factos verídicos por trás facilmente acreditaríamos que a Netflix estava a
fazer uma releitura da trilogia Ocean’s, deixando de lado crime para
apostar numa mensagem mais ativista e com algum tipo de causa para gerar uma
maioria empatia com quem vê. Mas o rastilho para nos levar ao íntimo dos
personagens é diferente dos caminhos habituais nos dramas históricos, a
narrativa não se perde na autoexplicação e dá-nos a opção de criarmos os nossos
próprios juízos de valor sobre a moralidade de cada um deles. Esse é o aspeto
que consegue cativar na primeira metade da película, e tornasse num arranque
fundamental para conquistar mais públicos do que aqueles que já iam consumir
este tipo de projetos pela ligação que têm a factualidade. E há um segundo
pormenor que conquista, a própria história. Há uma guerra de intenções, mas
sobretudo a síndrome dos anti-heróis que convenhamos que cativam sempre muito
mais do que os típicos bonzinhos pela empatia que trazem. A empatia que
convenceu multidões a seguir as filosofias daqueles homens é a mesma que nos
leva a acreditar em cada frame dos discursos políticos e que desperta a
vontade de fazermos algo para mudar os paradigmas em que vivemos. O filme tem
esse efeito, é uma mensagem revolucionária num tremendo respeito pela luta, mas
com o cuidado de colocar no mesmo tempo de ecrã o lado bom e mau que este tipo
de manifestações acarreta.
Mas é no momento
em que o julgamento começa que tudo se torna visceral e chocante. Desde o
primeiro diálogo entre Bobby e o Juiz que sentimos o que é raiva em estado puro
e é nesse momento que o guião assume o alto risco de superar as nossas expectativas.
O argumento lança uma escada que parece ser impossível de subir, porém a cada
palavra dita por Frank Langella só consegue incomodar mais, no melhor dos
sentidos da palavra, por é isso que eleva o texto a um patamar tão bom. A
partir do momento em que ouvimos a expressão “political trial” sabemos
que não podemos esperar nada de bom dali, mas acho que estávamos todos longe de
pensar as consequências que isso traz, o momento em que vemos racismo a
acontecer na casa da justiça é tão revoltante quanto chocante mas retratado com
uma direção incrível que mostra a dureza e crueza como se desrespeitam direitos
em prol do que é aceitável pelos gigantes. Quando se confundem cargos com poder
não podemos esperar nada de bom, mas mesmo com a quantidade de notícias sobre
julgamentos engendrados ainda continua a surpreender-nos a capacidade que
existe de manipular factos para agradar a altas patentes. O discurso final do
Juiz que interpela um dos arguidos a contar uma versão da história que lhe
agrade mais é o exemplo vivo de como a prepotência existe e de como muitos
destes homens acreditam ser uma espécie de Deus que joga os peões num tabuleiro
de Xadrez em vez de encarar a realidade. Tudo bem que estamos a falar de um filme,
mas é um retrato que se torna essencial para que a consciência coletiva não
caia no erro de condenar o justo pelo pecador sem saber de cada detalhe é
facto. A verdade é que serve como uma verdadeira chapada de luva branca, porque
por mais que queiramos acreditar num mundo justo quem nos garante que a
fronteira entre a ficção e realidade é tão larga assim? Quantos casos de juízes
destes não existirão no mundo? Acima de tudo é mais uma lição sobre o respeito
pelo próximo, sobre as aparências, sobre a justiça e profundo respeito que
todos temos de ter pela liberdade.
Correndo o risco de nos surpreendermos e de aparecerem interpretações que nos vão arrebatar, já podemos quase confirmar que Mark Rylance está na corrida pelo seu segundo Oscar como Best Supporting Actor, e francamente com uma atuação ainda melhor do que a entregou em The Bridge of Spies. Dentro da loucura de estilos que os personagens de The Trial of Chicago 7 nos vendem, o advogado Kunstler é o balanceamento perfeito entre o rigor das ideias e a visão descontraída com que alguns dos arguidos vivem. Ele leva muitas das cenas do drama nas costas e carrega alguns momentos de alta tensão à medida que começa a aceitar a dura realidade de que nada do que se passa neste julgamento deriva de justiça ou lei, mas sim de lobbys e favores. Um crescendo que acontece na mesma velocidade do público, que se ignorarmos a sinopse por detrás do projeto só vai conhecendo a realidade de toda a ação no mesmo ritmo em que os acontecimentos chegam a Kunstler. Ele é o ponto identificador da trama, o olho mais próximo da audiência que vê em casa e que aos poucos se vai revoltando até que chega um momento m que diz basta. Todas as penalizações entregues pelo juiz ao personagem chegam em momentos em que nós já só queremos mergulhar para dentro do ecrã e fazer a chamada justiça pelas próprias mãos, é esse o upgrade da narrativa que sabe que apesar do peso da sua história tem elementos suficientes para nos cativar e surpreender, para nos manter acordados e atentos para além do obvio. O grito de revolta quando é repetida pela centésima vez que ele não representa Bobby é o ponto chave da empatia e também o momento em que entendemos que deixar o ator de fora da lista de indicados aos prémios será sempre ignorar um trabalho memorável na carreira de um ator que a academia está a redescobrir aos poucos.
Por outro lado, temos Eddie Redmayne. E este é um fator bastante sensível dentro da trama. A atuação dele como Tom Hayden está excelente, e isso não é sequer uma questão a ter em conta dadas as ferramentas que ele já nos mostrou antes. Soa apenas como mais do mesmo. Parece que Redmayne encontrou uma zona de conforto, que entendeu o registo onde se tornou infalível, e usa a mesma equação para os seus personagens. Enquanto de The Theory of Everything para The Danish Girl vemos pormenores e detalhes que nos vendem a verdade e conseguem distinguir os dois papéis, aqui temos um inverso. A fragilidade misturada com uma boa dose de coragem de Hayden é a mesma que move o seu mais recente papel em The Aeronauts, e ele não se parece mostrar preocupado em desligar os dois. A mesma estratégia tímida que tem em Fantastic Beasts está em cada frame da longa-metragem da Netflix, e neste caso as “coincidências” são ainda mais notórias, faltou sair da caixa. São estes pormenores que entregam os holofotes nas mãos de Sacha Baron Cohen. Para quem não é fã do género de comédia corrosiva de Borat, talvez não tenha tanta noção do talento do ator, mas aqui, no extremo oposto, provou-se como o segundo maior destaque de um elenco de luxo, logo depois de Rylance, numa atuação incrível que se pode muito bem comparar com o exemplo de Steve Carell em The Morning Show. Brilhantes e bem-sucedidos na comédia e ainda mais viciantes no drama, uma agradável surpresa que é digna de nota! Esperemos por mais momentos em que Sacha dispa os personagens e lhes dê um cunho tão estudado e trabalhado como com o seu Abbie.
Falar de guerra é sempre um tema sensível. Nunca podemos abordar nada
relacionado com isso de ânimo leve, e aqui para além de tudo o resto é dada a
merecida homenagem a quem a merece. Mas voltando à comparação que iniciamos
antes, a verdade é que lidamos muito mal com as castrações de liberdades, mas
temos muito pouca noção da história que se escreveu afetada por confrontos como
este, e pouco ou nada nos importamos de reclamar a liberdade como um direito
sem dar a mínima importância às lutas, somos todos um pouco preguiçosos. Não,
este não é um filme como Sufragette, mas na sua menor escala vem falar
sobre a liberdade de pensar e defender aquilo em que acreditamos, doa a quem
doer e enfrentando as consequências que daí vierem. Até porque os próprios
arguidos se mostram bem conscientes dos erros que cometeram, e que
provavelmente terão de pagar por eles, isso não chega a ser uma questão para
eles, até porque sabem que não tiveram comportamentos dignos de uma
beatificação para chegarem a este ponto, mas à parte disso só querem uma coisa:
Fazer chegar a verdadeira e importante mensagem da causa que defendem, do que está
errado. E por tudo isto que The Trial of Chicago 7 vem no momento
perfeito, para entendermos que para podermos queixar-nos da falta de liberdade
temos acima de tudo que ter respeito por aqueles que sofreram as consequências
para a termos como dado adquirido, é educativo, sobretudo isso, afinal de
contas entreter e aprender são verbos que se continuam a interligar na
conjugação do cinema. E respeitar é, sobretudo, cumprir as regras. Se
repararem, em nenhum momento foi mostrado um desrespeito da outra parte, exceto
quando o tribunal o instigou, as regras foram cumpridas. E essa mensagem
subliminar é simples, defende-se a liberdade, com as devidas regras, mas
sobretudo com o bom senso e a justiça do lado certo. Esperamos que o Oscar
faça jus a tudo isto.
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