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Contos Bastardos • "O dia mais longo"

 

O dia mais longo

Os dias nascem todos iguais.
Parto natural. Múltiplos gémeos siameses, colados pelo último segundo de um e pelo primeiríssimo do outro. Somos iguais na forma, daí alguns armarem-se em excêntricos no conteúdo. Sabem que vão acabar e isso dá-lhes a liberdade de serem maravilhosa ou horrivelmente criativos.

Quando estava na fila de espera para o meu irmão terminar e eu poder nascer, pensei bem no que queria fazer com as minhas vinte e quatro horas de fama.

(Tenho inveja dos dias que existiram logo no início dos tempos, onde ainda se inovava. Agora já ninguém era visionário. A repetição é tanta que os teólogos arranjaram teorias sobre o tempo ser cíclico e não linear, como se andássemos todos aqui numa rodinha a brincar ao Aqui-vai-olenço-aqui-fica-o-lenço.
Vulcões? Visto.
Tsunamis? Tão 2004.
Sismos? Estiveram na moda há uns anos.
Até na meteorologia já há quem nos preveja.
Eclipses, chuvas de estrelas, equinócios? Tudo mais batido do que o Jerusalema nos 380 irmãos que me antecederam)

Quero ser o dia mais longo de que há memória.
Posso ser só mais um 23 de março banal ou um 19 agosto sem sobressaltos.
Dispenso datar quedas de muros ou mortes famosas, planeio até correr ameno e sem grandes aparatos ou surpresas.
Só desejo durar-me mais uns segundos. Parece mania das grandezas, mas não passa de uma inexplicável vontade de permanecer, de resistir.

As 23h57 chegaram e eu só queria mais do que estas migalhas de tempo que ainda tenho para olhar para as constelações.
Os minutos escapam-me por entre os dedos e é quando olho para a lua que bate a minha última badalada. Fico mais um segundo - arrisquei, consegui. Não me aconteceu nada.

(Mas um sentimento inexplicável cresce dentro de mim - uma vontade imensa de que o meu irmão, aquele que me segue, também possa ver tudo isto.
Passo-lhe o testemunho)

Texto: Sónia Costa 
Ilustração: Filipa Contente