Header Ads

Contos Bastardos • "21 gramas"

 

21 gramas

Diz-se que o peso de uma alma são 21 gramas.
(Quantos quilos já roubara até àquele dia?)

Um médico crente e chalupa dos tempos arcaicos pegou em seis moribundos e acompanhou as alterações no peso de cada um - antes e depois do último suspiro. Registou a descida exata de 21,3 gramas como constante.
(Os mitos nascem assim - de historieta com contornos bizarros que se tornam inspiração para livros, filmes - consciências?)

A balança tinha chegado no correio, na volta que devia trazer a recompensa do último serviço. (Tecnologia de ponta, pensou. Não o serviço, que foi sujo e artesanal - a balança.)
Mas nem cinquenta gadgets domésticos chegavam para somar o montante combinado nem ele admitia receber em valores.

O dinheiro havia de chegar na próxima volta. Ninguém pede fiado a um assassino a soldo.
As represálias eram bem mais temidas do que um pagamento em dobro e eventual bancarrota.
(Não conseguia deixar de olhar para a balança. Ali, em cima da bancada.
Um objeto inanimado mas carregado de julgamento,
a alma tinha 21 gramas e a culpa, quanto pesava?)


Extravio? (Indireta?)
Ia ser paciente e aguardar a próxima encomenda.
(Mas aquele pensamento em espiral, caramba. Mais de duas dezenas de gramas de quê?
Sonhos? Emoções, desejos? Se era verdade, ainda tinha os seus?)


No outro lado da rua, a vizinha abria o correio para encontrar um pacote maior do que esperava.
(Deve ser aquele maldito plástico-bolha, a miúda se o apanha enche-lhe os ouvidos)
Quatro maços de notas. (E o eletrodoméstico, que não havia meio de chegar?)

Terminado o quarteirão, o carteiro suspirou e olhou aliviado para a mochila vazia, agora tão leve - de encomendas, de responsabilidades.
(Um killer não sofre, não sente misericórdia, não conhece arrependimento.
Até ao dia em que uma balança chega na volta do correio)

Texto: Sónia Costa 
Ilustração: Filipa Contente