Caçar com Gato • Crónica 1 - "Desavenças entre palavras"
Desavenças entre palavras,
de Luís G. Rodrigues
Recordo-me de ser pequeno – pequeno ao ponto de frequentar o ensino primário – e gostar de folhear dicionários. Conhecer o sentido das centenas de milhares de palavras da Língua Portuguesa sempre me pareceu uma tarefa, ainda que impossível, muito corajosa, principalmente para um miúdo que, provavelmente, dada a ingenuidade, não sabia o significado de “utópico”. E mesmo hoje, já conhecedor do termo e da obra de Thomas More, o problema da ingenuidade romantizada teima em não desaparecer. Tanto que, de vez em quando, torno a esse hábito do pequeno eu.
Descobrir novas palavras continua a ser algo de maravilhoso; algo que, quando acontece, parece vir acompanhado de um pequeno burburinho que as palavras nos sussurram ao ouvido: “Finalmente, encontraste-me. Eu aqui à espera nesta folha de papel no meio de tantos outros significados e tu nunca mais. Estás sempre a queixar-te do tempo que passas na fila das Finanças mas não és melhor, imagino como seria se tivesses de tirar senha: “número 124 para a palavra “linóleo””.
Enquanto não as descobrimos, estão acompanhadas, em dicionários, por outras palavras que, por sorte ou azar à nascença, ficaram com a mesma primeira letra. E como, desta vez definitivamente por azar, as palavras não se podem dirigir ao registo civil para mudar de nome, lá têm de se aguentar.
Imagine-se só, por exemplo, a palavra “árvore” suportar uma fila interminável e dirigir-se ao balcão para dizer: “Desculpe, não quero estar na companhia da palavra “artrose”, não consigo viver assim, nada de bom vem dali”.
Então e “comiserar”? O que não deve sentir esta pobre palavra com um significado tão belo (“inspirar paixão; sentir compaixão”) ao pé de “comissão”? Que paixão inspira uma Comissão Parlamentar ou de Inquérito? Ou um valor cobrado sobre um dado negócio? Nenhuma! Absolutamente nenhuma! O maior desejo da palavra “comiserar” era poder existir ao pé das palavras “amor”, “ternura”, “compreensão”, porém, é-lhe impossível. Está ali pertinho de “comovente” e já não é mau.
Outro caso complicado é o das palavras “fígado” e “figo”…
Para além de competir com uma fruta que tem nome de jogador de futebol, o fígado farta-se de sofrer. Seja nas redes sociais com uma utilização sarcástica por parte dos jovens (“prepara-te, fígado, que hoje vai doer!”), seja na própria vida real porque acaba mesmo por doer. Enquanto que o figo, não só tem um nome digno de Bola de Ouro, como ainda às vezes é utilizado como adjetivo valorativo: “Chamar-lhe um figo!”
Quantas vezes não pensou o fígado: “Preferia mil vezes estar na companhia das palavras “moderação” ou “saúde””.
Mas não. Tem que se contentar com “figurino”, já que também é comummente ignorado.
Por fim, trago um último caso de discordância. Ainda que, este que agora irei expor, tenha assumido proporções pouco vistas no que diz respeito a conflitos entre palavras.
“Desaconselhável” e “desagradável”.
À partida, até parece haver alguma consonância em termos de sentido, contudo, não é assim.
A palavra “desagradável”, em certo momento da história, ouviu-se ser utilizada da seguinte forma: “É desaconselhável ser desagradável”. Ui…o que esta pessoa foi dizer. Ainda hoje, receio que este indivíduo não sabe o que é que as suas palavras começaram; mas as próprias sabem. Desde então, “desaconselhável” tem sido alvo de constante bullying por parte de “desagradável”, que faz jus ao seu nome, aparentemente.
Da última vez que as vi à bulha, ouvi “desagradável” dizer o seguinte: “Sua desacreditada, desatualizada, desafortunada, desajustada! Desalentadamente desapontante! Ficas a saber que não te aconselharia a ninguém! Desastrosa!”.
Ao que “desaconselhável” simplesmente respondeu: “Desnecessário”.
Texto: Luís G. Rodrigues
Imagem: Juan de Dios Mora, Partido en Dos, 2009
Comente esta notícia