Contos Bastardos • "Hoje fui chorar para o Jardim Municipal"
Hoje fui chorar para o Jardim Municipal
Hoje fui chorar para o Jardim Municipal. (Pareço um puto.)
Sentei-me na sombra de umas estátuas renascentistas. Demorei-me a contemplá-las e julguei encontrar semelhanças tuas numa delas - mas estava sem óculos, devido ao choro incessante e lentes molhadas por consequência.
Meti as dioptrias e as parecenças evaporaram-se de imediato - o que me deixou triste.
Credo, estou muito hormonal. Vou mudar de sombra.
Escolho um tronco de cipreste.
Mas é uma árvore fina (de tamanho e robustez, porque de maneiras não teria como saber - nunca privámos, desconheço se é daquela flora que cumprimenta com um só beijo e trata os filhos por “o arbusto”).
Não dá grande sombra, mas ataca-me as narinas que é uma coisa parva. Lança jatos de pólen transparente que se metem nas vias respiratórias e causam uma cócega cerebral incapacitante.
(Pelo menos os olhos arranjaram um motivo plausivelmente macho para lacrimejar. Já posso assoar-me alto à vontade. Serve-me bem a desculpa da rinite para esconder uma desgostite-de-amorite.)
Privar com este cipreste fez-me acabar de novo sem óculos. Um ciclo vicioso.
(A miúda foi feita aqui no parque, no segredo de uma amoreira que anos mais tarde serviu para lhe alimentar três ninhadas de bichos-da-seda.
Mas disto só nós dois é que sabemos)
Só nós dois é que sabíamos.
Estou a citar Tony de Matos, vejam o desespero. Ultimamente tenho-me feito acompanhar da sua música, nas minhas passeatas com o Lucas pela trela - não sei qual de nós o mais velho, cansado e sem vontade de caminhar. (Se eu, se o Lucas, se o Tony a cantar aos meus ouvidos que as cartas de amor são pedaços de dor.)
Hoje fui chorar para o Jardim Municipal e parei ao pé do lago. São setenta anos e pareço um puto de liceu.
(que ficou sem par para o slow)
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