Contos Bastardos • "Um pequeno passo para o Homem"
Um pequeno passo para o Homem
Não havia uma noite de verão em que não fosse esperá-la.
Encostava-se na esquina mais movimentada da cidade, aquela entre as avenidas principais, e ficava a aguardar.
Não que dali tivesse uma visão privilegiada - para isso podia escolher lugares bem melhores, mais secretos e exclusivos, menos povoados do trânsito e da correria que a cidade ainda tinha àquela hora. Mas a razão é que ali tinha encontrado o ângulo perfeito: entre a fachada do hotel e a entrada pomposa do teatro, era onde ela aparecia. Mesmo no canto, a completar a fotografia. Todos a podem ver, sim, mas ninguém tem aquele enquadramento - e passar despercebido nesse privilégio fazia-o sentir-se tão sortudo quanto egoísta. O prazer privado em público.
Enquanto a esperava não conseguia evitar sentir-se ansioso com a possibilidade de, naquele dia, não lhe ter apetecido dar a habitual volta noturna.
Era de fases: ora aparecia com um fulgor e uma beleza estonteante, luminosa e cheia de vida, ora vinha discreta e meio sombria…
E se se tivesse sentido mais caseira naquele serão?
Talvez se tenha ido deitar cedo…
Os minutos a passar.
Hoje não a vê.
A esta hora já sopra uma brisa fria. Já não sai do quarto, é o mais certo.
Sente-se um palerma. Dentro dele, ondas loucas de desilusão, enchentes de tristeza: uma maré vazia de esperança. Vai embora e jura não aparecer no dia seguinte.
Mas, dois dias de nevoeiro depois, é à mesma esquina que o pé esquerdo se encosta, no conforto do hábito, na esperança de que hoje não falha.
E é quando ela aparece - a tez avermelhada capaz de iluminar a esquina, todas as esquinas, todos os quarteirões. Capaz de eclipsar tudo o resto.
Ele desencosta o pé, senta-se no banco mais próximo e promete ficar toda a noite.
Ilustração: Filipa Contente
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