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Contos Bastardos • "Sobe, sobe, pelo ar"

 

Sobe, sobe, pelo ar

Porque raio não posso ser uma criança normal, das que brincam com balões sem medo que rebentem? Sentam-se neles, pisam-nos, pintam-lhes narizes e olhos para fazer uma cabeça de homem-balão, arrastam-nos pelas ruas e pelas feiras populares, entre multidões e esquinas e ganchos de cabelo e animais de estimação.

Encolho-me só de pensar nessa explosão, que não é mais do que o símbolo da liberdade, ar que extravasa além fronteiras elásticas para voltar onde pertence - basta um quarto de milímetro de agulha para devolver o oxigénio e o dióxido de carbono à atmosfera-mãe, um nanossegundo de distração para o animal selvagem devorar o artista de circo e o pássaro fugir da gaiola.

Se pudéssemos escolher os medos como escolhemos as roupas que vestimos de manhã ou o prato da cantina, escolhia o banalíssimo medo de agulhas. Até os balões têm medo de agulhas - eu tenho pavor de balões e nunca temi uma única agulha. Tenho uma tia com fobia de azeitonas. É o inferno nos jantares de família e quando chegam as entradas dos restaurantes com papel branco a fazer de toalha de mesa. A mim atormentam-me os balões.

Tudo começou no jardim infantil, com um balãozinho cor-de-rosa. Um vilão fúcsia soprado pela educadora Lélia e atirado em volta da sala, de mão em mão como as pombinhas da Catrina. Agarrei-o, não o deixei fugir, este brinquedo não empresto, não é como os lá de casa que o João me roubou quando nasceu, levou o baú todo de bonecos e atenções. Perdida neste pensamento egoísta apertei-o com tanta força que me rebentou nas mãos e caiu flácido no chão.

Conheci nesse som o conflito eterno entre a instabilidade do descontrolo e o egoísmo da previsibilidade. (Os balões em nada me assustam - o medo é não estar preparada para os ouvir rebentar).

Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente