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Contos Bastardos • "A que horas parte o comboio?"

A que horas parte o comboio?

“Estas meninas da cidade andam sempre cheias de pressa”

Atribuo o meu bilhete de estadia a esses acordes.
A balela do encanto à primeira vista não funcionaria comigo, que sou míope que nem um morcego. Foram as tuas palavras que me deixaram de pé atrás.
O pé direito. Que não subiu a carruagem porque parou congelado no cais, repentinamente com vontade própria, meio dormente e desengonçado, cheio de formigueiros.
Olhei para ti e recuei o pé esquerdo também. Repensei a pressa e respondi-te. “Conheces-me de algum lado?”

Na altura não - mal eu imaginava que te ias tornar quem melhor conhecia todos os meus lados. Abriste em mim ruas de sentido obrigatório onde havia trânsito proibido. Inventaste vírgulas depois de pontos finais.

Tomei por garantido que sabias que era por ti que as minhas arritmias eram motivadas. O eletrocardiograma estava normal, mas ficaste tão preocupada que me quiseste levar para a tua terra por uns tempos, para me acalmar.
Eu fui, feliz da vida, o coração mais acelerado que nunca.

Esta carta é como o Sunquick, aquele sumo concentrado das festas de quando éramos miúdas. Espero que saibas ler nas entrelinhas e diluí-lo, mais não seja ao líquido das lágrimas que nunca chorei à tua frente.
O chá de cidreira e mel continua a saber a ti e a casa - sinónimos. Quer beba em Paris, em Bordéus ou numas águas furtadas da Azambuja.

Fazemos uma dupla imbatível, como capa e contracapa de um livro que eu adorava ler.
Parti do princípio que soubesses. A minha mãe ensinou-me que é do princípio que devemos partir. Estas linhas são um meio para evitar um fim. É tarde?”»

Pousei a caneta.

“Não. Há sempre comboios a ir e voltar. Conheço o destino. Vejo-te na próxima paragem.”
 
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente