Contos Bastardos • "O teu nome não é palavra"
O teu nome não é palavra
Já não o via há mais de uma década quando veio parar-me às mãos. Saltou da estante como um projétil e apanhei-o com a mão direita.
Estranhei vê-lo assim, escrito.
O teu nome.
Tentei
tirar-lhe importância. Era só mais um termo inesperado, daqueles que
ouves no café ou na fila do pão e pensas “Ao tempo que não ouvia este
vocábulo curioso!”
Mas
não fui capaz. Houve algo que me prendeu. Como a maçaneta da porta que
captura o bolso ou a chave ou a manga do casaco e nos dá um puxão para
trás: assim foi a sensação de o rever sem aviso.
E ali estava, o evadido invasor, exatamente como me lembrava dele mas tão ineditamente diferente. Sem marcas de idade.
Dominou-me uma estranheza contraditória, daquelas que só o que nos é familiar pode causar.
Não demorei a perceber que o teu nome não é uma palavra. É mito. Ou lenda.
Falham-me aqui as classificações gramaticais. Queres provas?
Não lhe encontro sinónimos.
Há
expressões semelhantes, de repente uma palavra mais banal que parece
corresponder. Mas basta pensar melhor e vai-se a semelhança pela
semântica abaixo.
Também
não aparece no dicionário. Se parece aparecer, lá vem uma letra pelo
meio ou pelo fim que difere e, sem mais nem menos, estamos perante um
termo assustadoramente comum e meio ridículo até, absurdo por me ter
algum dia enganado e levado a crer que pudesse ser o teu nome.
Não
é adjetivo nem pronome, nunca foi complemento, não é verbo e por isso
não o conjugo no pretérito imperfeito - muito menos no infinitivo.
O teu nome já não é palavra.
Perdeu
qualquer réstia de esperança de o ser - sobretudo porque não tem
motivo. Despiu-se de fundamento. Secou-lhe a justificação.
Extinguiu-se-lhe a única aplicação prática que lhe pude algum dia
reconhecer: chamar-te.
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente
Ilustração: Filipa Contente
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