Contos Bastardos • "Carrossel"
Carrossel
Estas noites quentes são as minhas favoritas na feira popular - o ar cheira a algodão doce e a pipocas de manteiga. A lengalenga dos carrinhos de choque confunde-se com a música gravada, os risos das crianças e os gritos que vêm ao longe da montanha russa especial importada.
Todos os dias há quem acredite que consegue derrubar as latas empilhadas da banca da sorte e ganhar um urso de peluche gigante - fazem fila, pais e filhos, embora os segundos já saibam que as latam têm areia dentro e as bolas que se atiram são de esponja leve como algodão. (Quem me dera acreditar assim)
Nenhuma destas diversões modernas me atrai como o velho carrossel. Foi mal batizado de canguru e nunca mais se livrou do nome. Sento-me no lugar cativo e ajusto as proteções para mais uma viagem. Os movimentos mecânicos são os mesmos há mais de duas décadas - a tontura e o enjoo já se foram mitigando à medida que a previsibilidade se instalou, são muitos anos e tantas voltas, os pescadores habituam-se ao balançar das ondas.
Mas a sensação de ser livre, de voar, de largar o chão - é só aqui que a reencontro e mato a fome deste vício todas as noites.
(Os antídotos são fabricados com um punhado minúsculo dos próprios venenos.)
Já é a minha terceira volta hoje. Revisto os bolsos em busca de mais uns trocos mas percebo que esgotei o que trazia. Deixei a banca dos cachorros-quentes ao abandono durante uma hora - por esta altura a fila já deve chegar à barraca da cigana que lê sinas (Vidente necromante, porque não me avisaste para me afastar do carrossel no dia do desastre?).
Saio para a cadeira de rodas e abro caminho pela multidão, que se vai desviando por já me conhecer o destino. (Escolhe o que amas e deixa que te destrua.)
Ilustração: Filipa Contente
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