COMING UP | Vanda
Com um primeiro episódio que é uma introdução bem estruturada, o gostinho que Vanda nos deixa é de que esta é uma história que não vai ter pruridos em mostrar a realidade tal como ela é. Por mais que esta seja uma narrativa que promete ter momentos de ação, este começo mais morno é exatamente aquilo que precisávamos para nos conectar com a protagonista e para entendermos que o tom da série passa muito mais por mostrar qual o limite de uma pessoa que está em desespero, do que incidir sobre o inusitado mote real que inspirou a série.
Mas não é simplesmente drama por drama, é um drama que é mundano, que é próximo, uma história de algibeira que ouvimos contada por um número infinito de famílias e que de uma forma ou de outra todos sentimos na pele. E depois de termos estabelecido tempo, espaço, e um ponto de empatia com a protagonista, a nossa visão será moldada por todo esse contexto e pela proximidade.
O inusitado, de resto, surge precisamente do facto de uma mulher banal, como tantas outras com uma vida desfeita, ter a ousadia de agarrar numa arma de plástico e cometer uma série de assaltos. Isso o enredo de Vanda conseguiu captar, sabendo dar tempo às coisas sem correr para um momento de explosão no primeiro episódio que poderia dar aso a falhas de coerência.
Mas vamos falar-te de tudo isto e muito mais na edição desta semana do Coming Up, que volta a apresentar-se o que de diferente está a ser produzido na ficção nacional. Fica connosco!
Vanda é baseada numa história real, inusitada e com alguns elementos de surrealismo que a tornam numa escolha fácil para adaptar ao pequeno ecrã. O grande problema com estas narrativas reais carregadas de pormenores sórdidos é transcrevê-las para um projeto sem parecer que estamos a trabalhar com uma realidade de plasticina, em que as regras, leis e provas são moldadas para servirem um enredo, retirando-lhe a verdade e esvaziando a credibilidade, mesmo que estejamos a falar de algo que realmente aconteceu naqueles mesmos moldes.
Assistindo ao primeiro capítulo, Patrícia Müller parece ter consciência sobre como o baseado numa história verídica pode tornar-se uma pedra no sapato, e fez exatamente aquilo que na grande indústria de Hollywood, por exemplo, se faz pouco: criar o inusitado aos olhos de todos antes de o oferecer de bandeja ao espectador. E é aí que entra não só o contexto abrangente da crise, o tal fator próximo que gera empatia porque todos já estivemos de alguma forma com aqueles sapatos calçados, mas também a descrição de quem é Vanda.
Ela é uma pequena empresária que tem a clientela que qualquer salão de beleza do bairro tem, está inserida numa comunidade que funciona quase como uma aldeia, em que todos a conhecem e todos têm uma opinião sobre ela. É uma mãe que passa por todas as questões que qualquer mulher com crianças em casa passa no dia-a-dia e é casada com um marido mandrião que gosta da vida à moda antiga, em que a mulher serve como dona de casa, a criada que trata dos afazeres enquanto ele se encosta no sofá a beber cerveja e a fingir que está à procura de emprego.
Temos o estereotipo, mas temos a realidade de várias famílias ali numa normalidade que apresenta Vanda como alguém que não tem um feitio fora da caixa, que não tem um traço de sociopatia, mas a quem a vida disse: “Desenrasca-te”.
A forma como a série apresenta esta história surge com uma naturalidade rara na ficção nacional, com alguns paralelos em produções da RTP, mas mesmo assim poucos. Nada ali parece fabricado e todos os detalhes são tão credíveis e próximos que só destacam o normal e mundano que é a vida desta mulher.
É certo que depois entra um arco como o do marido que a trai com a funcionária, que já puxa um pouco o lado novelado para dentro desta realidade tão natural. Porém, mesmo essa questão é apresentada na trama de uma forma tão corriqueira que não mancha em nada a construção anterior e ainda ajuda a entregar logo neste primeiro capitulo, com diálogos bem crus que fazem espelho com a tal vontade da trama em apresentar-se como um história que vai retratar a vida de uma pessoa real com muito mais preocupação em humanizar a personagem do que propriamente em produzir uma obra de ficção que encaixe num serão de família.
E nem falamos apenas dos palavrões, falamos dos diálogos que não têm uma maquilhagem nas palavras, que não têm um cuidado de fazer bom uso do português, mas que nos oferecem um entendimento completo sobre qual é o meio em que Vanda está inserida, qual é a sua classe social, etc. Ou seja, temos nestes diálogos um espectro completo sobre esta mulher, seja no momento em que perde a paciência com Lena seja no seu desabafo com Mónica sobre a personalidade dos seus filhos.Está tudo ali para termos uma consciência completa de que esta mulher é irritantemente banal, podia, no fundo, ser a nossa vizinha.
O melhor deste primeiro capítulo é que Vanda consegue contar-nos uma história de uma mulher comum sem se tornar num enredo esquecível e com um ritmo que realmente nos cativa. Há várias reviravoltas naturais, que não são colocadas às três pancadas para servirem a narrativa, mas que acontecem na vida de centenas de pessoas todos os dias.
Num momento estamos a conhecer Vanda, noutro estamos a começar a entender um pouco mais sobre como se relaciona com os filhos, pelo meio já apanhou o marido a traí-la, e sem darmos por isso chegamos ao final do episódio com uma chorrilho de problemas que aconteceram com Vanda, e nem dêmos pelo tempo que passou.
Já estávamos tão embrenhados na espiral de desastres que lhe estavam a acontecer que já só pensamos como é que ela ainda vai conseguir dar a volta? Ou o que é que lhe pode acontecer mais? Tal como na vida de todos nós, por vezes basta encararmos um problema para a seguir percebermos que por trás desse problema há um série de coisas que não sabíamos que aumentam ainda mais a dimensão do problema anterior.
E quando mete dinheiro ao barulho dificilmente não há coisas piores por saber. Tudo acontece sem perderem o fio à meada com o contexto geral que foi estabelecido antes. A crise não serviu apenas para nos situar, mas está latente em tudo o que acontece, as personagens movimentam-se em função do que está a acontecer na atualidade, tal como era na época que a série retrata.
A sensação que dá é que este é um enredo que a autora tinha escrito naquela época e que tinha ficado na gaveta, porque consegue ter escrita tão enquadrada com aquele tempo, tão vivida, que talvez não fosse tão forte se fosse criada há um ou dois anos com um distanciamento maior do dia-a-dia desse tempo. É certo que todos nós temos memórias sobre como era, mas a série consegue transportar-nos para lá de uma forma fiel e próxima que é pouco habitual.
Saindo um pouco da história e falando de Gabriela Barros, ela é exatamente o que esta série precisava para a tornar ainda mais próxima de nós. Além de ser uma atriz com provas dadas em quase todos os registos e de injustamente ter um reconhecimento a baixo do que ela devia receber, é uma cara diferente.
Vanda é um grande e exigente papel, pelo que já podemos depreender não só deste primeiro episódio mas do lado verídico que a inspira, e é o tipo de personagem que muitas das vezes cai nas mãos de atrizes que já têm um certo estatuto na carreira, que são protagonistas em todos os projetos que entram e que têm um talento gigante mas que acabam por não trazer frescura e proximidade para quem vê.
No fundo, já sabemos que a sua interpretação vai ser fenomenal mas essa consciência também nos faz ver que está ali uma atriz a fazer um papel. Gabriela Barros, por ser um nome um pouco fora da caixa, e por estar aqui num registo mais sério depois de se ter tornado um autêntico fenómeno em Pôr do Sol, traz uma verdade maior, traz novidade, traz uma pessoa nova.
É essencial que uma personagem que se quer introduzir como uma mulher banal nos traga um nome competente mas diferente do habitual, sem uma atuação em que já seja possível identificarmos os seus vícios.
Num casting perfeito, Gabriela Barros entrega não só essa sensação de novidade mas consegue ainda trazer-nos uma mulher real sem parecer que está a esforçar-se demasiado para o fazer. Não vemos ali a Gabriela que protagonizou Pôr do Sol em nenhum momento, não a vemos fazer parecer que está a descer do salto alto que calça na vida real para interpretar uma pobrezinha mas que na sua atuação continua a ter os vícios de uma pessoa bem educada.
Num paralelo mais direto, a interpretação de Gabriela Barros faz lembrar a naturalidade de Margarida Vila-Nova em Sul, e só prova que ela é um dos maiores talentos da sua geração, que veste qualquer tipo de personagem e que consegue dar um tom diferente a cada uma.
Mesmo a sua Flávia de Mulheres que partilhava o mesmo estatuto social da sua Vanda, são duas pessoas completamente distintas. Esta Vanda pode até ter a vida a ruir-lhe à frente, mas em cada diálogo sabemos que ela não se vai sujeitar, que é uma mulher de luta e com vivências que a fazem ter essa garra, a Flávia era um pouco mais o estereotipo de mulher sofrida. É bom ver que até no mesmo registo ela sabe que nuances dar às personagens para nos fazer conhecer pessoas novas.
Vanda é só mais um prova de que a ficção original que está pelo streaming da OPTO merece ser vista. Com potencial para se tornar numa das melhore séries da plataforma lutando mano a mano com O Clube e A Generala, Vanda traz uma linguagem que difere da grande maioria das produções nacionais por encontrar o meio termo entre o texto romantizado e o calão demasiado gráfico e forçado.
Em termos de construção este primeiro episódio volta a lembrar muito a forma como a HBO constrói os seus dramas, algo que já tinha acontecido com A Generala, assinada pela mesma autora.
E dizemos isto porquê? Porque a HBO tem uma forma muito própria de contar as suas histórias, e que é transversal a grande maioria dos seus projetos originais, sejam eles históricos ou contemporâneos, todos os dramas da HBO têm como alicerce personagem que não são unidimensionais, contextos vastos e que são muitas vezes reinvenções de factos verídicos ou que tem pelos menos algum paralelo, mas acima de tudo são narrativas com um grande sentido de verdade e que querem chegar até nós pela empatia e não pelo drama barato que escorrega facilmente no clichê.
A fotografia e a aposta em cenas exteriores ajudam, e muito, a construir a tal relação de proximidade com a personagem, e em tornar a história palpável.
No fundo parece existir uma grande noção de que uma história destas não pode começar a ser contada sem os alicerces certos, num cuidado notável em não cair no erro de ser logo à partida uma série recheada de ação gratuita mas que não perde em nada com isso e que consegue agarrar-nos enquanto se introduz e apresenta num drama que tinha tudo para ser desinteressante mas que faz uma leitura tão certeira da realidade que consegue exatamente o contrário.
Uma surpresa agradável e que venha a próxima sexta-feira, queremos saber como é que Vanda dá a volta a isto.
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