COMING UP | Rainha e a Bastarda
Rainha e a Bastarda é o ponto em que o romance e a história se encontram. Com uma produção que sabe aproveitar muito bem o épico, a nova aposta da RTP é mais uma das histórias a ter em conta neste arranque do ano. O histórico é sempre um género difícil de trabalhar ou por correr riscos de tornar a narrativa arrastada ou por poder cair no clichê de nos contar algo que já vimos em outras várias produções desse estilo. Contudo, Patrícia Müller consegue, mais uma vez, provar que o romance histórico é terreno confortável e entrega-nos uma série recheada de personagens ricos, sem com isso desfazer a ideia geral que temos das figuras em questão, enquanto procura ângulos que nos relatem os eventos como se fosse algo completamente novo. Falamos disto e de muito mais em mais uma edição do Coming Up. Fica connosco em mais uma viagem ao conteúdo nacional que reforça a qualidade do que se faz por cá.
Além de Patrícia Müller saber muito bem o caminho que quer para a sua história, existe neste primeiro episódio um esforço simultâneo se manterem os traços gerais da personalidade dos protagonistas, elevando todo o argumento a um projeto didático que reforça a nossa cultura geral e transporta o nosso corpo para um período histórico que, de facto, existiu.
Historicamente a primeira dinastia é recheada de momentos emblemáticos, com Reis de personalidade forte e que foram romanceados ao longo dos séculos com nuances de carácter que os tornam personagens altamente complexos e ricos.
De D. Afonso Henriques a D. Sebastião, a nossa cultura, as lendas, e o dito saber popular, absorveu muitas das histórias que se passaram entre estes reinados, tornando figuras como D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro e outros que tais personagens próximas de todos e sobre as quais uma larga maioria da população tem pelo menos uma vaga ideia pré-concebida sobre quem eram e como eram. Tudo isto torna o processo de escrita de Rainha e a Bastarda em algo que exige um arcaboiço gigante.
D. Dinis é, provavelmente, um dos mais famosos elementos desta primeira fornada de Reis, e por isso é essencial que a personagem fosse construída sem defraudar essas ideias enraizadas sobre ele, mas não ao ponto de fazer com que isso comprometesse toda a história da série e a fizesse parecer um mero relato repetido.
Num trabalho bravo, Patrícia Müller encontrou o meio termo perfeito entre estes dois pontos apresentando a imagem de um homem firme nas suas convicções, apaixonado pela escrita e pouco dado à monogamia enquanto no subtexto começa a defini-lo como um Rei cansado que pretende libertar-se da espada e que começa a priorizar outros aspetos da sua vida.
Com uma guerra a acontecer em pano de fundo, vemos um homem que deixa isso de parte para procurar a sua filha, num arco bem justificado pelo cansaço que a personagem foi apresentado desde o primeiro momento em que nos apareceu.
E enquanto existe esse esforço para fazer uma reconstituição de D. Dinis, nas personagens que orbitam à volta, essas já menos familiares do grande público, o conteúdo romanceado ganha destaque com Lopo Aires Teles.
A dor de perder um filho, independentemente das circunstâncias, é sempre algo impactante para quem vê e exige cuidados redobrados na sua exploração para que essa dor seja expressa de forma realista e com a qual quem já passou por isso consiga identificar-se.
Independentemente de aqui essa questão ser abordada com contornos bem distantes da nossa época, o peso que cai nos ombros da personagem é transmitido ao público com o devido peso sem floreados e representada de um forma que consegue ser ao mesmo tempo um típico elemento para romancear a dor e o seu completo oposto refletindo de uma forma crua a forma como aquele homem carrega o peso da perda consigo.
A narração de Paulo Rocha e a transição da cena em que o vemos com o corpo do filho no ombro é um dos momentos altos do episódio que acaba por nos envolver emocionalmente com a personagem e estabelecendo ali um ponte complexa entre passado e presente.
Quando acompanhamos uma trama de época é extremamente difícil encontramos elementos que nos façam conectar de uma forma emocional com as personagens, e aqui este arco é o elo de ligação que mostra que Rainha e a Bastarda é um projeto com um propósito diferente.
Há, ainda, a destacar que além de esse núcleo conseguir conquistar a nossa empatia fá-lo de uma forma que não é gratuita, essa explicação da dor da personagem tem um pródigo narrativo de nos orientar a nós público e ao protagonista para o impacto seguinte, num encadeamento extremamente bem construído.
Este é um primeiro episódio e por isso há muito caminho para palmilhar daqui em diante, mas é bom entender que logo à partida enteados o potencial bruto de várias personagens, além de todos eles terem dilemas pessoais.
No fundo, um dos grandes destaques que temos de apontar à grandiosidade do projeto é por percebermos que esta não é uma série evento.
Há um elemento central que faz a história andar, mas também há um humanizar das personagens que não leva a que todas as suas ações estejam dependentes ou sejam tomadas em prol do que está a acontecer no tema central, o que neste caso seria o caminho mais óbvio, dado que estamos a acompanhar um cenário de uma guerra que pode colocar todo o país em risco e que terá consequências reais na vida de todos os intervenientes. Temos, por exemplo, um vislumbre dos dilemas que D. Afonso IV e D. Beatriz de Castela passam além do que se passa no campo de batalha, com problemas mais mundanos além do que ali se debate.
Mas fugindo por completo das espadas, vemos a Rainha Santa Isabel e a sua aia entre o povo doente, e esse arco sim é totalmente factual com aquilo que aprendemos nos livros de história. Ou seja, há esforço para que se enriqueça toda a série com mais nuances fazendo sempre o híbrido entre o histórico e o romance, sem nunca se comprometer com nenhum dos pontos.
Mas passando para aspetos para além do argumento da série, Rainha e a Bastarda tem uma fotografia e um trabalho de caracterização acima da média. Mais do que cenas bonitas que ficam bem no ecrã, existe um cuidado de não nos colocar à margem do como eram as pessoas naquela época.
Temos as atrizes a surgirem de cara lavada, despojadas da imagem de grandiosidade que muitas séries e filmes passam destas épocas, mas nem é esse o ponto mais vincado no trabalho de caracterização.
Conseguimos sentir o lado sujo da guerra com os atores com marcas de sangue, com nódoas, com terra, numa representação que foge em muito ao embelezamento habitual que vemos na televisão mas que consegue, mais uma vez, acertar no ponto certo do que é a verdade dos eventos.
Rúben Gomes veste a pele do Rei cansado, naquele que possivelmente é um dos seus maiores desafios em televisão, e entrega exatamente aquilo que precisamos para entender o estado de espírito da sua personagem sem cair em exageros.
Na contraparte, Diogo Martins volta a ganhar espaço numa série da RTP para mostrar todo o seu talento num papel desafiante que o coloca à margem dos restantes papéis em que estamos habituados a vê-lo e que reforça ainda mais o seu crescimento enquanto ator. Depois de Até Que a Vida Nos Separe, encontramos aqui mais um desafio que destaca o seu mérito e que será, à semelhança de Rúben Gomes, provavelmente o seu papel mais desafiante em televisão feito até à data.
Paulo Rocha tem o peso da narração na sua personagem, mas entrega uma interpretação com muito sumo que ainda terá mais impacto daqui para a frente, certamente.
Maria João Bastos e Anabela Moreira continuam a transmitir-nos aquilo que sempre transmitiram, a capacidade de serem camaleões e de beberem o contexto à sua volta.
A personagem de Anabela Moreira tem tudo para sobressair, com a série a abrir logo no primeiro episódio momentos que nos permitem ver o seu talento, tal como aconteceu no seu último trabalho com Patrícia Müller em A Generala.
De forma geral, Rainha e a Bastarda, preenche todos os quesitos para cair no top de quem gosta de conteúdos históricos e consegue piscar o olho a outros públicos com arcos e dramas que são transversais a qualquer época, além de apresentar interpretações que nos envolvem e transportam para dentro da trama num verdadeiro elenco de luxo.
A dupla Sérgio Graciano e Patrícia Müller já nos tinha conquistado com A Generala e volta agora a comprovar-se como um parceria que sabe muito bem trabalhar histórias de época, mas sobretudo fazer sobressair o talento de quem entra nos seus projetos, o que é notório pelo protagonismo repartido dos vários atores, mas também pela construção do ambiente que coloca em grande plano as suas emoções e nos consegue catapultar para um período que é absurdamente distante da nossa realidade.
É interessante ver como em alguns momentos de construção de personagem conseguimos ver similaridades entre os dois projetos e como mesmo nas questões mais técnicas como a fotografia ambos saem irrepreensíveis.
Esta é uma história muito nacional nas linhas gerais, porém, Rainha e a Bastarda tem o diferencial de se tornar um drama épico com base verídica que consegue ser facilmente entendido na sua plenitude por qualquer país. Por mais que estejamos a ver algo que se baseia num período que nosso, alguém que esteja fora desse contexto vai, de igual forma, conseguir criar ligações e empatia com o que ali se vê.
Será um piscar de olho aos Streamings? É que A Rainha e a Bastarda tem na sua génese um conteúdo que cativa muito o público das super produções da HBO. Estaremos a adivinhar o futuro? Fica a dúvida.
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