COMING UP | Licorice Pizza
Para quem está familiarizado com o portfólio de Paul Thomas Anderson não é surpresa nenhuma perceber que Licorice Pizza é todo ele sobre a essência da temática que o realizador decidiu explorar desta vez. A ótica autoral de Anderson é muito vincado e sem sombra de dúvidas diferente da maioria com os personagem a prevalecerem para lá dos conceitos básicos da narrativa. Este diferencial traz riscos desta não ser uma história que consiga prender todo o tipo de público mas consegue manter fiel a lógica do realizador de nos oferecer personagens que por si só consigam agarrar a nossa atenção e fazer-nos mergulhar dentro das suas questões e com isso fazer-nos pensar um pouco sobre os problemas que o enredo levanta.
Licorice Pizza não é um filme linear, por vezes a sua noção de espaço e tempo é tão desconexa que torna o ritmo da longa-metragem inconstante, mas tal como acontece em obras como Inherent Vice ou Phantom Thread os protagonistas são tão marcantes que mesmo sem nos conseguirmos a cem por cento com a ação conseguimos que eles nos fiquem na memória, conseguimos criar empatia, porque afinal de contas, eles são criados de uma forma tão humana que é impossível não nos identificarmos.
Falamos-te disto e de muito mais nesta última edição dedicada à corrida aos Oscars. Fica connosco nesta análise a um projeto alucinante e diferente.
A adolescência é o ponto fundamental do drama de Licorice Pizza. E é a partir de todas as mudanças e decisões irresponsáveis do par principal que vamos seguindo uma história que não se esforça por se conectar mas que estabelece cada evento como se fosse parte de um livro de memórias aberto ao público.
Ouvimos em várias séries e filmes os personagens a referirem que no seu passado fizeram coisas imagináveis, loucuras típicas de adolescentes que estão à procura do seu lugar no mundo e de se entenderem com todas as mudanças inerentes à idade. Se juntarmos a isso alguns privilégios e uma educação com muito mimo, percebemos que Licorice Pizza é uma aventura mais ou menos intimista à consciência de um adolescente que aqui é personificado pela personagem de Gary, mas que tem um espectro tão abrangente que consegue criar pontos de conexão com qualquer pessoa que assista à película.
É certo que no meio desta análise há momentos em que a narrativa cai em exagero, exacerbando as loucuras adolescentes a um extremo perigoso, mas é por isso que a forma mais interessante de olharmos para esta obra é interpretá-la como um apanhado de memórias de Gary como se ele estivesse a relatar-nos os eventos loucos em que participou.
Quando falamos com alguém sobre algo da nossa vida que aconteceu há algum tempo, alguns pormenores parecem surreais, porque o temo moldou esses factos de forma a torná-los memoráveis, e dentro da narrativa isso acaba por se refletir em episódios tão doidos quanto o momento em que Gary vai preso sem ter cometido nenhum crime ou no salto de mota de Alana com um astro de Hollywood que aparece avulso dentro da história.
Esta interpretação livre de Licorice Pizza ganha sustento não só por ter esse surrealismo impresso mas, também, pela forma como todo o enredo arranca de uma forma abrupta quase como se já tivéssemos uma noção prévia de quem é Gary, da sua vida e dos seus problemas.
Como nas outras obras do realizador, e é isso que torna este projeto tão intrinsecamente ligado com Paul Thomas Anderson, há um espaço enorme para o público tirar conclusões, obriga-nos a interpretarmos a história da nossa maneira, tornando-nos parte dela e com isso altera a nossa perceção.
Quanto mais disponíveis estivermos para procurarmos uma lógica neste filme maior será a nossa capacidade de criarmos uma empatia com tudo o que acontece e com a forma como Gary vê o mundo. E obrigatoriamente a nossa visão sobre esta longa-metragem será diferente do nosso colega do lado, porque a interpretação dele vai enaltecer pormenores, que para nós são detalhes mas que para ele são pontos fundamentais.
Dito isto, com esta liberdade total, Licorice Pizza torna-se num filme muito pessoal que tem como cabeça um rapaz mimado que comete uma série de ações que não lembram a ninguém mas que se consegue estabelecer de uma forma tão coerente que acaba por dar sentido a tudo e ainda virar a chave ao ponto de nos fazer entender todas as razões que lhe passam pela cabeça para tomar até a atitude mais estúpida.
Mesmo com todos os questionamentos morais que isso possa levantar, conseguimos perceber o seu pico de adrenalina hormonal quando decide partir o carro de Jon Peters depois de ele o ter ameaçado, conseguimos entender a sua vontade de mostrar aos outros que consegue construir um império no mundo dos negócios mesmo sem uma aptidão especial para isso.
Enfim, ao fim ao cabo, depois de estabelecermos um conceito para o filme e de criarmos alguns pontos de identificação qualquer dado que o filme nos apresente consegue ser justificado, porque todos nós fomos adolescentes e somos quase obrigados a defendê-lo numa psicologia reversa em que justificamos a nós mesmos as decisões erradas que tomamos quando calçamos os mesmos sapatos que o protagonista.
Licorice Pizza é um projeto que nos dá trabalho. Que puxa por nós e que para além de nos obrigar a interferir para estabelecermos um contexto para o que vemos, ainda tem um ritmo tão desconexo como quando ouvimos as histórias contadas pelos nossos avós.
Sabem aquela sensação quando o nosso avô nos conta algo sobre a vida dele e que depois se perde e acaba por passar um bom tempo a descrever-nos uma situação que nem é assim tão relevante para depois passar a correr outras partes da histórias que nós até achamos que são mais interessantes? É essa mesma sensação que Licorice Pizza nos transmite, com eventos e saltos temporais que nem sempre são percetíveis e tornam o ritmo da obra em algo tão complexo que se desviarmos a atenção por um momento já perdemos o fio à meada.
E se isso acontecer, se não conseguirmos manter o foco no ecrã durante as duas horas de filme, algo que diga-se que neste caso é difícil, é quase como se desligássemos um interruptor mental e nada a partir dali parece fazer sentido.
Até porque, à boa moda da vida adolescente, há sempre muita coisa a acontecer, muitas mudanças, muitas alterações de estados de espírito, muitos objetivos que num determinado período de tempo são algo absurdamente importante mas que na passagem de tempo seguinte já se tornam irrelevantes. E em Licorice Pizza temos de ter destreza suficiente para entender isso dedicando-nos não só a compreender as escolhas de Gary mas também de Alana que vive uma transição difícil entre deixar de ser uma adolescente e passar a encarar-se como uma adulta com estruturas e objetivos mais definidos.
Saindo um pouco da narrativa complexa da película e olhando para o elenco, porque Licorice Pizza vive muito do facto de ter um casting excelente, Cooper Hoffman tem aqui uma rampa de lançamento gigante e entrega uma atuação convincente e importante no sentido em que serve para humanizar as loucuras do seu papel.
Além do aspeto físico já carregar uma identificação grande por fugir aos padrões habituais da histórias de Hollywood colocando no centro de uma narrativa uma pessoa real e não um boneco de cera que se torna uma arquétipo da perfeição, é a sua capacidade de interpretar um personagem sem precisar de grandes diálogos que preenche o papel e faz deste Gary alguém memorável.
Em muitas das cenas em que estamos perdidos ele consegue situar-nos pela sua transparência em mostrar as suas emoções, é quase como se ele esboçasse o que vai na alma do personagem na sua postura, na sua expressão facial, ele não constrói um boneco para a personagem, mas entrega sim uma versão crua de como qualquer um de nós se comportaria se fosse filmado durante a sua adolescência.
Com Alana já é outra história. Já há ali um trabalho notório de criação, uma dedicação diferente para que os traços de personalidade e sobretudo a dualidade que a sua personagem vive seja notória. Mas esse excesso de zelo também a torna mais próxima de um boneco de cena, contrastando com o realismo que Hoffman dá a Gary.
São duas forma distintas de construir um personagem e enquanto um nos conquista por trazer uma atuação genuína que nos dá conforto, o outro já parece esquematizado para que no momento X entregue a emoção Y retirando em alguns momentos alguma fluidez à atriz Alana Haim.
De um modo geral e continuando na definição de que Licorice Pizza é um filme que nos obriga a irmos em busca de um sentido pessoal dentro daquela história, Hoffman é o mapa que nos orienta, enquanto Haim consegue largar-nos a mão muitas vezes e nos faz desligar o interruptor da atenção.
Este é um ano bastante peculiar entre os nomeados aos Oscars, porque na sua larga maioria os indicados a Melhor Filme são projetos de extremos. Além de serem diferentes entre si, o que já é habitual e ainda bem que assim é, desta vez chegamos ao ponto em que o mesmo filme pode ter tantas interpretações diferentes que consegue ser odiado ou detestável num estalar de dedos.
Belfast, Drive My Car e Licorice Pizza são três exemplos de uma forma de fazer cinema que não pensa nas massas e que não exige um consenso, o que os torna em filmes difíceis de serem discutidos porque exigem experiências e vivências muito intimas.
À parte disso, Paul Thomas Anderson é um autor e realizador que tenta imprimir algumas temáticas existencialistas dentro de uma paleta de cores colorida que consegue captar a atenção de públicos que não são tão dados a estas temáticas mas que acabam por cair nessa busca interna para dar sentido às coisas.
Licorice Pizza está bastantes furos a baixo de outras obras do seu catálogo mas não envergonha pela força que os seus personagens têm de nos agarrar e pela essência da temática adolescente ter sido bem absorvida. Este é tipo de obra que poderia servir de formação aos Young Adults mas que corre o risco de ter interpretações perigosas por não ter um fio condutor que realmente puna o que está errado.
Ou seja, vive ali num limbo que deixa à consideração do público se o que estão a ver é desculpável ou não, algo que até seria interessante debater com quem está a passar pela mesma fase da vida que os protagonistas desta obra.
Certo é que apesar da sua exigência, Licorice Pizza deverá sair como um dos vencedores da noite dos Oscars. O troféu de Melhor Argumento Original ninguém lhe tira das mãos, mesmo que não seja totalmente justa essa menção.
Está longe de ser um real competidor pela estatueta de Melhor Filme ou por Melhor Realização, mas é sem dúvida um filme diferente que merece ser visto mas merece, ainda mais, ser discutido.
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