COMING UP | Drive My Car
Dentro da lista de nomeados esta é a longa-metragem mais existencialista. Drive My Car cruza linhas com a filosofia e o abstrato num projeto autoral longo que não é de gosto fácil. No seguimento de Parasite ou Minari, o filme de língua não inglesa da vez abre portas para uma forma diferente de se fazer cinema marcando pela diferença de ao contrário dos anteriores não ter um tema que seja próximo das massas, o que não invalida que o modus operandis asiático esteja bem vincado e que fuja um pouco das regras das obras que vemos habitualmente entre os indicados aos Oscars. Drive My Car é uma história densa, recheada de pormenor e com mensagens avulso sobre como lidar com o lado menos bom da vida.
É dramático num sentido extremo, mas com uma narrativa que procura ser uma tradução da realidade que não se preocupa em tomar rumos que embelezem a história para o cinema. Fica connosco em mais uma edição do Coming Up dedicada aos Oscars com aquele que é provavelmente o projeto mais intrigante da principal categoria.
Drive My Car arranca com um longo prólogo que nos estabelece quem é quem dentro de um universo em que a criatividade não está apenas no argumento do filme mas é, também, parte da ação. Logo à partida há um cuidado extra para estabelecer o que é um facto do dia-a-dia dos personagens e o que é algo pertencente à peça de teatro que o protagonista está a protagonizar no momento, enquanto, em simultâneo, vamos acompanhando os brainstorms das histórias de Oto.
Só nesta introdução de quarenta minutos já podemos ter uma certeza: Criatividade é algo que não falta no argumento do filme.
Mas apesar de estabelecer muito bem as suas bases e de integrar os três elementos da história num linha coerente e interligada, isso acaba por se tornar numa fraqueza do filme por carregar uma densidade gigantesca que é quase como uma bomba nas mãos do público.
Somos apanhados de surpresa pelo desenrolar dos eventos do primeiro ato e quase que nos sentimos a remar contra a maré com tantos pormenores e detalhes que o filme precisa que entendamos num curto espaço de tempo. Antes mesmo de recuperarmos o fôlego da nossa tentativa de percebermos todos os cantos e recantos deste texto já somos confrontados com o primeiro twist do filme, sem ainda estarmos totalmente imersos na narrativa e sem termos criado ligações de empatia suficientemente fortes para que a traição de Oto seja tão impactante para nós como é para Kafuku.
E neste ponto encontramos um problema que mina a nossa relação com Drive My Car, a sensação de que estamos a correr atrás do protagonista, de que ele já tem em mente outros problemas e dilemas enquanto nós ainda estamos a absorver o impacto anterior.
De resto, vale a pena referir que Drive My Car tem um acerto gigante nos seus twists, apesar da morte de Oto ter sido mais ou menos previsível, daí em diante todas as reviravoltas fogem dos clichês comuns e têm uma visão mundana das coisas que acaba por suprimir um pouco a nossa ausência de conexão com Kafuku, sobretudo no segundo ato em que é essa capacidade de nos ir agarrando aos pequenos detalhes que acaba por prender a nossa atenção.
Atenção é, na verdade, a palavra mais importante quando falamos de Drive My Car. A longa-metragem tem quase três horas de duração num ritmo contemplativo e existencialista, que casa bem com a mensagem que o texto nos quer dar e que faz justiça às obras literárias de Murakami mas que em termos de ritmo prejudica imenso a nossa ligação.
Nós sentimos a passagem de tempo, sobretudo no final do segundo ato, em que deveríamos estar instigados para saber o desfecho mas ao contrário disso o argumento que até então tinha sabido balancear o seu lado existencialista e filosófico com o drama entra numa cadência profunda.
É certo que esta cadência tem como elo de ligação o estado emocional do protagonista que se vai degradando ao longo do filme até que nos momentos finais se entra totalmente ao sentimento de culpa, mas é algo acaba por puxar tudo para um ritmo ainda mais lento com cenas contemplativas que poderiam ter sido reduzidas até para terem mais impacto junto do público.
Conseguimos sentir as palavras que lhe estão entaladas na garganta, os gritos que ele se proibiu de dar, conseguimos sentir cada aspeto da repressão emocional a que ele se prostrou mas parece que nunca temos um momento alto em que ele nos consegue realmente emocional.
É como se existisse um conflito ético na narrativa que quer tanto fazer-nos entender tudo o que está no interior de Kafuku que se impõe a não exteriorizar demasiado. No final a sensação que ficamos é que este é um filme cujo o propósito é levar-nos numa viagem intensa à realidade quem tem uma depressão, imbuindo o nosso estado de espirito numa tristeza que é aflitiva e que não sabe bem como libertar o público depois disso.
Os ingredientes estão todos lá, o filme consegue transmitir-nos algo, consegue comunicar connosco de alguma forma, mas parece que nos expõe problemas e deixa a perguntas de resposta arbitrária sem nos trazer algo de positivo em troca.
Drive My Car é uma grande e pesada aula de psicanálise que levanta questionamentos importantes e que segue à risca a proposta de que as respostas não podem ser dadas por outros mas apenas por nós próprios, um regra que até poderia funcionar e ser interessante caso fosse coerente.
É que nos primeiros quarenta minutos de filme não há nada que o defina como arbitrário, é todo ele estanque com alguns clichês básicos, e depois parece que a chave vai virando para se deixar levar e acabar sem rumo.
Se já antes tínhamos a sensação de que corremos atrás do protagonista ao invés de caminharmos lado a lado, essa distancia vai aumentando ao ritmo que a chave das perguntas sem resposta gira deixando-nos com a conclusão clara de que perdemos a corrida e que apesar das grandes questões morais e psíquicas nos deixarem a matutar na obra depois de terminarmos acabam por cair no esquecimento por uma ausência de momentos deixem com a sensação de que levamos um murro no estômago.
Faltou a Drive My Car uma identidade clara, um percurso que nos deixasse confortáveis ou que pelo menos nos deixasse a liberdade de sermos nós a decidir se queremos ou não encontrar conforto naquela trama. Ao invés disso temos um argumento manchado de lágrimas.
Mesmo com o argumento a condicionar o nosso apresso pelo personagem, Hidetoshi Nishijima consegue ser o grande highlight de Drive My Car numa interpretação visceral e que consegue prendermos mesmo nos momentos em que o filme é injusto com ele e não nos deixa percebermos totalmente a sua arte.
A carga do personagem está presente em cada cena, a tristeza que invade o texto está latente em cada diálogo que lhe sai e até a expressão corporal dele nos situa nos momentos em que a longa-metragem nos perde nos seus momentos mais contemplativos.
É um dos grandes nomes deixados de lado entre os indicados a melhor ator, num papel que tem uma dimensão e uma exigência em alguns pontos vários furos acima de outros nomes que concorrem nessa categoria. No fundo torna-se em mais um daqueles nomes que nos deixa a pensar que se o filme tivesse sido lançado noutro ano talvez conseguisse sobressair ainda mais.
Ele abraçou o filme de uma maneira muito intima, com as cenas em que dirige o elenco da peça de teatro a tornarem-se momentos mágicos de interpretação e que ultrapassam a barreira da língua facilmente.
Se Drive My Car está entre os destaques em muito o deve a Nishijima, que mesmo em relação ao restante elenco está muito acima no seu talento mas consegue ser o suporte para os colegas com menos à vontade nos seus personagens. É uma atuação tão intima e conectado com o personagem que consegue cativar-nos mesmo com toda a distancia que o filme criou entre o protagonista e público, isso diz muito do seu talento.
Drive My Car é um projeto exigente. É longo e denso, em alguns momentos é até demais. Não é uma daquelas obras memoráveis, e por todo o seu tom triste é uma trama à qual dificilmente queremos voltar.
A empatia foi substituída pela total apatia no final da história que deixa muitas questões em aberto e com a sensação de que pode tornar-se um filme gatilho não aconselhável a todo o tipo de público. De resto, Drive My Car não é a narrativa que vá encaixar com a maioria dos espectadores, não só pelo tom mas pela falta de ritmo.
Temos por exemplo Nomadland, o vencedor do ano passado, que era, também, um projeto contemplativo, mas que soube dosear e soube usar os momentos em que respira para fazer a história avançar e nos ligar aos personagens. Algo que neste não acontece de todo e há vários frames que poderiam ter sido excluídos do corte final.
Por tudo isto, Drive My Car passa longe de ser um filme suficientemente consensual ao ponto de levar para casa o Oscar de Melhor Filme. Na verdade, a sua maior força está na categoria de Melhor Argumento Adaptado, porque, de facto, ele consegue transpor para o ecrã toda a escrita de Murakami, com o seu peso filosófico e com as suas personagens que são deixadas à mercê da ideias que o público tem sobre elas.
Talvez conquiste o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, onde claramente parte como favorito, mas títulos com mais potencial por lá que podem, realmente, variar a lógica.
A realização de Ryusuke Hamaguchi é louvável, mas falta-se algo que nos prenda, que nos saiba levar, não é, de todo um dos mais merecedores e está a ocupar uma vaga que deveria ter sido entregue a Denis Villeneuve e o seu majestoso trabalho em Dune.
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