Viajar Porque Sim | Um Pedaço do Douro
Nos seus 325 km em terras portuguesas, não faltam ao Douro motivos para o visitar com regularidade. As paisagens que ele oferece são sempre soberbas, e mesmo que já tenha passado várias vezes pelo mesmo lugar, ele nunca se mostra igual aos meus olhos.
Há uma estrada que acompanha
grande parte do percurso do rio Douro: a N222. O seu troço entre Peso da Régua
e o Pinhão foi considerado, através de fórmula matemática desenvolvida por uma
conhecida empresa de rent-a-car, a
melhor estrada do mundo para conduzir. Mas a N222 não pode nem deve ser
resumida a estes icónicos 20 km. Há muito mais estrada – menos perfeita e com
mais curvas, é certo, mas que corre entre panoramas igualmente inesquecíveis
sobre o rio e desvenda alguns segredos ainda bem guardados. E é por estes
caminhos que agora vamos passear.
Tomamos a N222 e percorremos uns
bons quilómetros até que encontramos o desvio para Mourilhe e a seguir a
indicação para o Parque de Lazer do Ribeiro de Sampaio. Aviso-vos já de que não
estão preparados para o que nos espera. Ao lado da estrada, entre as árvores,
um parque de merendas com mesas e bancos de madeira. Seguimos o som da água a
cair. O ribeiro passa sobre um maciço granítico e despenha-se na forma de uma
cascata abundante, para depois se acalmar subitamente e se transformar num
espelho de água que vai fundir-se com o Douro mais à frente.
Do outro lado da estrada há um
percurso pedestre que acompanha o ribeiro encosta acima, entre grandes pedras
cobertas de musgo e de humidade, árvores de todas as espécies, algumas
altíssimas, fetos e folhas secas caídas no trilho de terra batida, e a água a
correr em ziguezague e aos saltinhos sobre as rochas.
Alguém pendurou um baloiço
rudimentar na orla do ribeiro, que em época de calor será certamente menos
caudaloso. O verde é a cor dominante, e nem as ruínas dos antigos moinhos
escapam à cor. É a natureza em estado quase selvagem, e só os corrimãos de metal
colocados nalguns pontos mais propensos a escorregadelas mostram que já houve
ali intervenção humana. Mais acima, outra queda de água mais vistosa, cruzada
por uma ponte feita de troncos de madeira. Encantador é o adjectivo mínimo que
encontro para descrever este percurso, e mesmo assim não lhe faz justiça.
Apesar da vontade de ficar por
ali, por esta altura já serão horas de pensar em comer. Subimos até ao Parque
de Campismo e Caravanismo de Mourilhe, situado num outeiro com vistas privilegiadas
sobre o Douro. Recente e moderno, tem espaços definidos para tendas e para
autocaravanas, e os bungalows são
paralelepípedos castanhos encarrapitados irregularmente sobre o terreno, como
se fossem troncos ali largados por acaso. Ao lado da piscina, um edifício baixo
abriga o restaurante Escritório, também ele com um ambiente clean e discreto. O acolhimento é
eficiente e muitíssimo simpático, e a comida não podia ser melhor. Se houver
trutas, é a escolha certa – foram as melhores que comi até hoje, servidas com
esmagada de batata legumes.
O destino final de hoje é
Cinfães. Situada a 400 metros de altura e já nas franjas da serra de Montemuro,
a vila é arejada, tranquila, e funde harmoniosamente o antigo e o novo sem que
se notem grandes arroubos de mau gosto. Tem 3400 almas, mas pontos de interesse
não faltam e pede para ser descoberta com vagar.
O centro histórico, pequeno e
compacto, rodeia o coração da vila: a Igreja Matriz, dedicada a S. João
Baptista. Construída no séc. XVIII sobre o local onde já existia uma capela
(com fundações que alguns investigadores dizem serem dez séculos mais antigas),
exemplifica o estilo barroco presente em tantos dos nossos edifícios religiosos:
alvenaria pintada de branco com os vários volumes debruados com pilastras de
granito, uma fachada ornamentada com óculos, janelas e frisos e decorada com
motivos ondulados também em pedra granítica. A torre sineira está no centro,
coroada com a tradicional varanda de balaústres e uma pequena cúpula, e abundam
os habituais pináculos de bola ou “tipo cebola” e as cruzes latinas.
Ao lado da igreja fica o Jardim
Serpa Pinto – árvores bem alinhadas, relva, flores e um laguinho. Alexandre
Serpa Pinto foi militar e um dos nossos mais famosos exploradores em África. Terá
provavelmente nascido em Vimieiro (que pertence ao concelho de Marco de
Canavezes), mas a sua família vivia desde finais do século XVIII na região de
Cinfães. Esta ligação umbilical traduz-se na vila em várias homenagens à sua
figura, desde o busto colocado no jardim a nome de rua, de escola e de museu.
O Museu Serpa Pinto fica também
ao pé do jardim. É um edifício simples (que já foi posto da GNR, cadeia e pólo
de serviços da Câmara Municipal), pintado de amarelo, mas que não passa
despercebido por ter no exterior, à frente da fachada principal, várias
esculturas modernas. São duas as colecções que o museu expõe permanentemente: uma
é constituída por parte do espólio de Serpa Pinto, e a outra por peças
encontradas nas escavações arqueológicas que têm sido feitas nas terras do
município.
Nas ruas em volta do jardim e ao
longo das encostas – passear em Cinfães é um sobe-e-desce quase constante – há
edifícios curiosos que parecem um patchwork
arquitectónico. Uns têm telhados bastante inclinados, outros têm partes
revestidas a ardósia em escama, um parece uma casinha sobre outra, outro tem um
telhado semi-hexagonal com estátuas no topo, e outro uma varanda saliente,
fechada e envidraçada, que se apoia em esquadros de ferro forjado. Aqui não há
monotonia na construção e o passeio tem de ser feito de nariz no ar, porque são
estes detalhes que dão alma às casas. Também não passa despercebido o Portão da
Quinta de Fervença, um grande pórtico barroco, em granito, com um brasão
exuberante. Em tempos esteve junto à igreja, mas a construção da estrada
obrigou a que fosse deslocado para o sítio actual.
Uns degraus levam-nos a mais um
largo com árvores, um pequeno anfiteatro e repuxos que sobrem do chão. É o
Largo da Fonte dos Amores, local onde ocorrem alguns dos eventos culturais da
vila. A água projectada sobe a alturas variadas, cada repuxo com a sua cadência
própria, numa espécie de dança borbulhante, iluminada pelas luzes que se
acendem no solo ao cair da noite. Quanto à fonte que dá o nome ao largo, é uma
bica tímida que cai da parede de pedra a um canto, meio disfarçada por baixo das
escadas que levam à rua superior.
É precisamente por esta calçada
que vamos chegar à Tasquinha do Amado, uma das “mecas” gastronómicas da vila e
da região. O restaurante é pequeno e acolhedor, com muita madeira e uma
decoração onde se misturam placas de matrículas e sinais de cidades
estrangeiras, candeeiros com design
contemporâneo, relógios de parede, o capote de uma confraria e mais uma
parafernália de outros objectos. A carne arouquesa é a rainha do menu,
declinada em diversos tipos de confecção, mas há também petiscos de várias
outras espécies, bons vinhos, e até opções para quem for vegetariano. O mais
importante é que tudo é bom, por isso percebe-se que muitas vezes seja difícil
encontrar mesa em cima da hora. A somar a isto, a simpatia dos donos Miguel
(filho do Amado que deu o nome à casa) e Inês (a chef) também ajuda à popularidade do restaurante. Altamente
recomendável para terminar o dia em beleza.
Dia 2
O que até calha bem, porque Pias
é local de visita obrigatória neste roteiro. Aldeia com pouco mais de cem
habitantes permanentes, já foi em tempos muito mais importante e próspera, e o
testemunho maior deste facto é precisamente a sua ponte, cujas origens remontam
à Idade Média (embora a actual versão seja de inícios do século XX). Espalhadas
pela encosta íngreme, entre vinhas e arvoredo, misturam-se casas senhoriais e
outras mais humildes.
No fundo do vale apertado corre o
Bestança, que nasce a 12 quilómetros de distância e mil e qualquer coisa metros
mais acima, na serra de Montemuro. A sua relevância é inversamente proporcional
ao curto percurso: é um dos rios com melhor qualidade ambiental da Europa e
está integrado na Rede Natura 2000. Nas margens há uma enorme variedade de
espécies arbóreas – carvalhos, salgueiros, amieiros e castanheiros, entre
muitas outras – e o peixe mais comum das suas águas é (claro!) a truta.
Ao pé da ponte foi construído em
2018 o Parque de Lazer de Pias, que facilita o acesso ao rio e disponibiliza as
infra-estruturas de apoio necessárias a quem visita a localidade. Há espaço de
estacionamento e parque de merendas, um bar com esplanada (e um baloiço para as
fotos…) e sanitários.
O Bestança aqui é bastante
estreito, escorre entre tufos de fetos, cenouras-bravas, dedaleiras, embudes e
trevos-cervinos, e tão depressa corre e salta sobre grandes pedras como sossega
e fica quieto, em jeito de espelho de água plácido. Na margem oposta à do
Parque de Lazer ainda se vêem moinhos, um dos quais – o Moinho das Regadas –
continua em funcionamento.
É também em Pias que existe o
Centro de Interpretação do Vale do Bestança, espaço expositivo e de informação
para quem visita esta zona. Devido às limitações actuais, funciona
essencialmente por marcação.
https://cm-cinfaes.pt/municipio-cat/item/817-centro-de-interpretacao-do-vale-do-bestanca
Rua do Outeiro, Escola, Pias, Cinfães
Horário: 3ª a sábado 9h-13h e 14h-17h; domingo 9h-13h
Contactos: telefone 255
560 560 email turismo@cm-cinfaes.pt
Passamos sobre a Ponte de Pias, que faz parte da N222, e um pouco mais à frente encontramos o desvio para Boassas. Além de ser a aldeia onde a família Serpa Pinto construiu o seu solar – que é conhecido como Casa do Fundo da Rua e inclui uma capela – Boassas foi uma das participantes do concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, que o Secretariado de Propaganda de Portugal organizou em 1938 e visava enaltecer a ideia de um país e de um povo rural, brando e conformado, o modelo ideal preconizado pelo regime salazarista. Deste concurso acabaria por sair vencedora a aldeia de Monsanto, que ainda hoje continua sem se descolar do título que lhe foi atribuído nessa altura. Quanto a Boassas, o concurso apenas teve a vantagem de deixar para a posteridade algum património documental sobre a vida na aldeia nessa época. Oitenta anos depois, notam-se diferenças óbvias: a população é mais reduzida e menos jovem, algumas casas mantêm a traça mas outras estão já completamente descaracterizadas, e apenas a vista sobre o Douro permanece, embora também ela com alterações na paisagem. Ainda assim, a aldeia mantém um certo encanto, e vale a pena perdermo-nos em passeio pelas suas ruas estreitas e ondulantes.
Um passeio que tem o Douro como
mote não pode terminar sem nos aproximarmos dele, e por isso voltamos à N222
para descer até ao Porto Antigo. Acompanhando o Bestança, este é mais um dos
troços desta estrada que surpreende pela belíssima vista que nos oferece – e
não é de admirar que o silêncio se instale no carro, porque o cérebro está
demasiado ocupado a tentar guardar tudo na memória, e as palavras só
atrapalham. Chegamos por fim ao cais, onde talvez até esteja atracado um dos
barcos que passeiam os turistas pelo Douro. Ainda por influência da Barragem do
Carrapatelo, que fica a escassos quilómetros de distância, e porque este é
precisamente o lugar onde o Bestança se une ao Douro, o rio mais parece um lago,
e as colinas que espreitam umas por trás das outras fazem lembrar ilhotas tropicais,
cobertas de árvores e semeadas de casas meio escondidas entre a vegetação.
É com este cenário que termina o
roteiro de hoje – talvez a tomar uma bebida na esplanada, ou simplesmente a
descansar num dos bancos virados para o rio. Num sítio como este, todas as
opções são boas.
Bons passeios!
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