Fantastic Entrevista - Iris Cayatte: "Com o apoio de produção dos serviços de streaming talvez consigamos ter condições de trabalho superiores em Portugal"
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Com um vasto currículo em cinema, televisão e teatro, Iris Cayatte começou por fazer cinema em criança, no filme Sostiene Pereira de Roberto Farenza, uma experiência que considera ter sido "uma brincadeira". Depois disso, a atriz já teve oportunidade de integrar mais de meia centena de projetos nos palcos, no grande e no pequeno ecrã. Recentemente a HBO estreou KAMIZAKE, a primeira série dinamarquesa original da plataforma de streaming e na qual Iris desempenha o papel de Consuelo. O Fantastic falou com a artista sobre o seu percurso no mundo da representação.
A tua primeira experiência no mundo da representação ocorreu em 1996, quando participaste no filme Sostiene Pereira de Roberto Farenza. Que importância teve para ti esta oportunidade?
A participação no filme Sostiene Pereira do Roberto Faenza foi uma brincadeira, tinha cerca de 6 anos e fiz figuração durante um dia. Passei o dia inteiro a observar, a absorver tudo que se passava à minha volta. Pude observar o Marcello Mastroianni de perto, ver como se preparava antes do "acção" e como "voava" durante a cena. Nesse dia, rodeada de camaras, luzes, outros figurantes, técnicos e actores pensei "É isto que eu quero fazer quando for grande".
Em Arcana, de Jerónimo Rocha, protagonizas uma curta-metragem de terror, premiada em vários festivais, e que marcou pela diferença, num género que muitas vezes não é tão explorado em Portugal. Como foi interpretar este papel? Achas que o género de terror está a ganhar espaço no nosso país?
Gostei muito de interpretar Arcana, uma bruxa/feiticeira injustamente enclausurada que procura vingança. Foi um convite feito pelo realizador Jerónimo Rocha e pela produtora Take it Easy. Foi a primeira vez que trabalhei usando próteses faciais que mudaram por completo a minha aparência física. Eram 2 horas de caracterização todas as manhãs antes de filmarmos. Não me reconheci quando me vi ao espelho, e isso ajudou muito no meu trabalho de atriz. Foi uma rodagem dura fisicamente mas ficámos todos muito contentes com os resultados. O filme continua a circular por festivais de cinema e graças a ela acartei o meu primeiro prémio de melhor atriz, gentilmente cedido pelo Festival de Terror de Stiges. Existem cada vez mais filmes deste género a serem produzidos em Portugal e o Festival de Cinema MotelX tem vindo a encorajar a que mais sejam feitos.
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Sombras Brancas, de Fernando Vendrell, é um dos teus próximos projetos no grande ecrã. O que podemos esperar desta longa-metragem sobre José Cardoso Pires?
Sombras Brancas de Fernando Vendrell é uma adaptação do
livro De Profundis Valsa Lenta de José Cardoso Pires. No filme interpreto a
filha de Cardoso Pires, a Rita. Interpretar um personagem real é um desafio
muito grande para qualquer ator. O principal foco é o de se ser o mais justo e
fiel à pessoa real (apesar de ser um filme baseado no livro e não uma
biografia). Gosto muito de filmar com o Fernando, conheci-o em Três Mulheres e foi um prazer voltar a trabalhar com ele, agora em cinema. O filme ainda não
tem data de estreia mas deve estar para breve!
Evadidos, de Bruno Gascon, é outra das produções que integras, cujas gravações já terminaram. Para além do filme, a produção contará com uma edição em formato minissérie, a ser exibida na RTP. Como vês esta aposta do canal público em séries criadas a partir de filmes?
Evadidos de Bruno Gascon foi rodado em Barcelos durante
este último verão. Foi desafiante interpretar uma mulher (a única) líder de um
grupo neo nazi cujo objectivo é destruir a vida do protagonista (Tomás Alves).
Hanna é um personagem que não existiria sem o seu parceiro Jonnas, interpretado
pelo maravilhoso Rafael Morais. O Rafael e eu passámos muito tempo a pensar e a
discutir sobre o que poderia ser este duo de sádicos. Grande parte do meu
trabalho passou por esta descoberta a quatro mãos, do mundo de Hanna e Jonnas.
São ambos personagens muito fortes e confesso que toda a agressividade que a
Hanna carrega não foi fácil de limpar após o final da rodagem. É um papel hiper
violento. Foi a primeira vez que filmei com o Bruno Gascon e a sua incrível
equipa. Ansiosa pelo próximo projecto com eles!
Ainda na RTP1, pudemos ver-te em 2021 na série Vento Norte. Como foi interpretar esta personagem?
Vento Norte foi especial por várias razões. Foi o primeiro
projeto logo após a primeira quarentena. Actores e técnicos viveram 3 meses em
Braga, numa bolha mágica de criação e companheirismo. Construí e solidifiquei
amizades para a vida. Gostei muito de interpretar a Albertina Ferro, uma jovem
adulta com ideias muito à frente do seu tempo. A série passa-se entre 1919 e
1921. Deu-me muito prazer estudar sobre esta época em Portugal, sobre o papel
da mulher na sociedade nesta altura, sobre os costumes e política deste tempo.
Foi nesta altura que surgiram ideiais como "pagamento igual para trabalho
igual" para todos os trabalhadores das fábricas. A Albertina representa todas as
mulheres que tiveram coragem de seguir as suas convicções, sem medo das
repercussões, em prol da igualdade de género, dos direitos da mulher, dos
direitos do trabalhadores numa sociedade e época conservadora e limitada.
A série já foi caracterizada como uma “Downtown Abbey portuguesa”, passando-se nos anos 20, com o objetivo de retratar uma família aristocrata do Minho. Numa altura em que a aposta em séries portuguesas é cada vez mais forte, achas que a produção deste formato poderá estar a crescer, em qualidade? Porquê?
Cada vez mais se produzem séries de qualidade em Portugal, nos vários canais de televisão e agora mais ainda com os vários serviços de streaming que entretanto surgiram. Acho uma óptima iniciativa, e quanto mais possibilidades de produção audiovisual, melhor para todos. Para os que as fazem porque estão a trabalhar e crescer enquanto profissionais, e para o público que tem um leque mais diversificado de escolha.
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O streaming é também uma plataforma que tem vindo a ganhar um grande destaque nos últimos anos, com as televisões portuguesas a apostar cada vez mais em formatos para serviços como a RTP Play, OPTO SIC ou TVI Player. Achas que este poderá ser um caminho importante para apostar em formatos diferenciadores?
Em 2021 filmei, para a HBO, a primeira produção da HBO com a Dinamarca. É uma série chamada KAMIKAZE, que já estreou na HBO Max. Foi um privilégio trabalhar com aquela equipa de profissionais maioritariamente dinamarqueses. Sou 1/4 finlandesa e muita da minha educação maternal é nórdica. Identifico-me com a cultura e com o cinema feito no norte da Europa. O meu personagem fala em inglês e para mim isso é sempre prazeroso, sendo que comecei a fazer teatro numa escola inglesa, e mal completei o bacharelado, fui para Londres fazer a licenciatura em teatro. Nessa altura, e durante muitos anos, a língua inglesa foi a minha língua emocional.
KAMIKAZE é uma mega produção onde deu para perceber que com tempo e com dinheiro, automaticamente a qualidade de todos os departamentos de uma produção audiovisual se eleva. Com o apoio da produção de serviços de streaming como a HBO ou a Netflix, talvez consigamos, para além do que já fazemos, ter condições de trabalho superiores àquelas existentes em Portugal atualmente, talvez possamos fazer as coisas com mais calma.
Foste uma das protagonistas de Offline, um telefilme produzido pelo projeto Academia RTP, para a RTP Play, pioneiro na forma de pensar e fazer ficção para um serviço de streaming. Como recordas este projeto?
A iniciativa Academia RTP foi muito importante para jovens
cineastas poderem ter um espaço e apoio para criarem os seus projectos. Quase
que foi um dos primeiros serviços de streaming em Portugal, os filmes só
passavam na internet. O filme Offline teve bastante sucesso e continua a ser
exibido, agora sim, na RTP. Guardo essa rodagem com carinho por ter sido rodada
no Porto, cidade que me tem oferecido tantas oportunidades interessantes apesar
de eu ser de Lisboa. Guardo comigo também o respeito pela dedicação e empenho
de todos os jovens envolvidos neste projecto.
A telenovela continua a ser o produto com maior sucesso junto do público. Porque é que achas que isso acontece? Se pudesses mudar algo na televisão portuguesa atual, que tipo de produtos gostarias de ver em exibição?
A telenovela é um produto de entretenimento que atinge
vários públicos simultaneamente. E é por isso que tem sucesso. É fácil de
acompanhar e faz companhia. É também uma das formas que os emigrantes
portugueses têm de se sentirem próximos do seu país, da sua cultura e da sua
língua. Tendo eu vivido no Luxemburgo 4 anos, é para eles que faço quando
represento um papel em telenovela.
Apostaste na tua formação enquanto atriz desde cedo, nomeadamente estudando noutros países como os Estados Unidos da América e Inglaterra. Sentes que é importante ires acompanhando o que se vai fazendo lá fora?
Tenho a sorte de em criança ter vivido em vários países e de
ter interagido, aprendido e crescido com pessoas de nacionalidades diferentes.
Foram essas experiências que me abriram os olhos ao mundo. Na realidade somos
todos muito mais parecidos do que se pensa. E é sempre importante e construtivo
olhar-se para fora para se perceber o que se passa cá dentro.
Foste uma das performers do projeto Lovercraftland, um cine-concerto criado pelo músico Paulo Furtado e pelo realizador Edgar Pêra, a partir de contos de H.P. Lovecraft. O cine-concerto foi apresentado no Festival de Cinema de Roterdão, tendo ainda sido convidado a ir ao MoMa, em Nova Iorque, um dos mais importantes museus de arte moderna do mundo. Como foi fazer este percurso com o projeto?
Gosto sempre de voltar a trabalhar com o Edgar Pêra, com o
Paulo Furtado e com o Bando à Parte. É um mundo de pessoas que me fascina e
inspira. O universo do Edgar é peculiar, certeiro, intrigante, cómico, trágico,
fantástico. E foi ele que me deu a conhecer a escrita de HP Lovecraft.
Estreámos este filme/performance/cine concerto no Festival de Cinema de
Roterdão. Esperamos todos voltar a este projecto, mal o estado do mundo acalme
um pouco mais.
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Desde que iniciaste o teu percurso no mundo do teatro, contas já com cerca de 30 participações em vários espetáculos, não só em Portugal, mas também em cidades como Londres ou Buenos Aires. Quais foram as principais diferenças que sentiste na forma de se fazer teatro em Portugal e noutros países?
A Cultura em Portugal atravessa, atualmente, um momento complicado, que já se vinha a verificar há algum tempo, mas que se agravou com a pandemia. Como é que olhas para toda esta situação?
Como está o estado da Cultura em Portugal? A cultura
representa 0.25% da despesa do programa orçamental. É uma vergonha.
Dos inúmeros projetos em que já participaste, seja no cinema, em teatro ou em televisão, consegues destacar um que te tenha marcado mais?
A série Kamikaze da HBO por ser a maior produção. A peça O Jogador de Dostoievski no Teatro São Luiz por ter sido a minha estreia
profissional em Lisboa. O filme Guanche de Paulo Furtado e Pedro Maia por ser
um projecto guerrilha entre amigos. A série Os Boys por ter trabalhado com o
Tiago Guedes e o Pipo.
Quais são as tuas maiores inspirações nacionais e internacionais?
Tenho inspirações novas e diferentes todas as semanas. Passo
fases de pesquisa profunda sobre tudo e mais alguma coisa. Faz parte do meu
trabalho e de quem eu sou.
Enquanto atriz, o que sentes que ainda te falta fazer?
Estou sempre com sede de guiões interessantes, de grupos,
realizadores, cabeças e artistas que me estimulem, personagens desafiantes, de
boas histórias para contar.
Se te voltássemos a entrevistar daqui a 10 anos, o que gostarias de estar a fazer nessa altura?
Não consigo olhar para um futuro tão distante mas espero
estar tranquila e satisfeita com a vida. Espero continuar a estar a fazer o que
mais gosto, e me faz feliz.
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