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COMING UP | Glória

Para quem não é fã de ficção histórica ter uma trama de época é meio caminho andado para desistir de uma série com receio de ver relatos extremamente fiéis que tornem a história em algo arrastado e pesado. Ora, em Glória isso é tudo o que não acontece. Viajamos no tempo para uma época que já foi bastante explorada na ficção nacional mas nunca desta forma. Glória traz o movimento, o ritmo e a fluidez com uma narrativa imbuída em personagens cativantes cheios de camadas que fazem justiça ao género de espionagem e uma fotografia e imagem que são o melhor retrato da beleza do nosso país. Portugal aterrou na Netflix com ousadia trazendo drama e thriller num orçamento que é raro ver por cá e um drama que nos prende tanto ou mais que outras séries do catálogo da gigante do streaming. Fica connosco neste Coming Up dedicado a uma das estreias mais aguardadas do ano. 

Glória comunga de uma lógica bastante familiar para quem é subscritor da Netflix. Tal como acontece com sucessos como The WitcherThe Umbrella Academy e outros tantos títulos de diferentes géneros, esta trama nacional é uma daquelas histórias que se vai saboreando e que no primeiro episódio desperta a nossa curiosidade para ver mais mas não nos fascina de imediato. Esse fascínio vai crescendo de episódio em episódio muito graças à riqueza dos personagens e às reviravoltas da história, que são na maioria das vezes imprevisíveis mesmo para quem esta habituado a entrar em jogos de detetives. 

Glória vai-se construindo no seu tempo deixando um rasto de elementos que nos aguçam a curiosidade até à morte de Úrsula, que é o verdadeiro pontapé de saída para entrarmos mergulharmos de cabeça na vida daquela aldeia. 

Por mais que estejamos a viajar até uma época histórica, esse peso da fidelidade dos factos não é algo que condicione a ação. No fundo, esse contexto é todo entregue na introdução e a partir daí tudo o que temos é uma realidade de espionagem que está ao nível de muitos dos filmes deste género que se tornaram de culto em Hollywood. 


Pedro Lopes já nos habituou a ter personagens que são tudo menos planos, e que nos pregam partidas. Nesse sentido, ninguém nesta Glória se pode catalogar como vilão ou herói. Mesmo Ramiro, que é o mais próximo que temos de um personagem detestável, é criado a partir daquilo que são os relatos de muitos homens daquela época, que têm uma mente fechada sobre o que é o papel do homem e da mulher na sociedade, trazendo para um drama histórico um tema que está no topo da atualidade. 


Aliás, este é um dos exemplos sobre o quão bem o argumento, ou melhor, os alicerces de Glória funcionam muito bem, porque por mais que estejamos a acompanhar uma história que é desenvolvida ao sabor de factos reais, temos um conjunto de discussões atuais que casam com o argumento de forma credível e sem serem forçados a entrar na história para satisfazer as vozes mais criticas. 


Se desmontarmos um pouco essas bases temos debates sobre o empoderamento feminino, sobre a igualdade de género, sobre a imigração,  e mais alguns exemplos sem em momento nenhum desvirtuar aquilo que é factual à época. Jogamos vários jogos de poder num tabuleiro que ajuda a que os personagens nos surpreendam, mas aqui o maior ganho talvez seja a facilidade com que o texto nos leva ao engano. 


À exceção de Gonçalo, que já antevíamos a sua ligação ao governo muito antes desta ser revelada, todos os outros personagens esconderam o seu jogo, tal como deve ser perante os relatos da época, mas mais do que isso serve para nos deixar a nós espectadores numa posição em que acreditamos que todas as teorias são possíveis. Conseguimos acreditar que todos se estão a enganar e nem a fragilidade aparente de algumas figuras serve para os tornar menos suspeitos.



Mas deixando de lado a parte de thriller de Glória, temos romance. E um romance que não é linear, não é um simples apetrecho básico para colocar forçosamente um casal protagonista. Por mais química que Carolina e João tenham, o texto esforça-se para nos dar a entender que aquele sentimento não é algo tão cor-de-rosa quanto estamos habituados a ver nas séries. 


Eles têm uma afeição construída, pelo menos da parte de Carolina, numa ideia romantizada da realidade, enquanto João está tão toldado pela sua missão que acaba por ver Carolina como um elemento desta missão pela qual tem algum afeto mas não mais que isso. Não há um amor puro e duro a acontecer ali, e é bom ver essa mudança de paradigma. É mais um exemplo sobre como se podem fazer histórias diferentes que não entreguem todo o seu plot através de um casal apaixonado. 


Glória é uma carta de amor em vários sentidos, mas é mais do que o amor com o qual estamos familiarizados. É sobre o amor a um país, é sobre o amor a um povo que se vê prostrado às vontades de um governo masoquista, e é sobre verdade, o amor pela verdade e pela liberdade. João, por mais que tenha ideologias que o levam a agir de uma determinada forma não é apenas um mero agente. Por um lado ele une-se aos ideais que acha certos e defende-os muito por culpa do seu amor platónico por Mia, mas por outro lado ele age ao sabor dos seus próprios interesses numa luta pela verdade e pela transparência que não olha a vítimas. 


Pelo que conhecemos até agora de João, ele não teria de pensar duas vezes em expor até os seus aliados se isso lhe parecer o mais acertado, porque todo o personagem é construído em cima de um alicerce de justiça, muitas vezes aplicada de forma pouco ortodoxa, em que não se pensa duas vezes na hora de agir. E não, esta justiça não é, em tudo, fruto da sua relação com Mia. Há demasiados detalhes que não encaixam para que todas as ações de João sejam meros mandatos da sua apaixonada.


E chegamos a Mia, a figura mais enigmática desta história e a dona do maior plot twist. Mais uma vez a máxima de que no mundo das séries alguém só está realmente morto quando vemos o corpo volta a comprovar-se. Escrita de uma forma muito próxima dos dramas de espionagem ingleses, a forma como Mia se movimenta dentro do jogo de Glória leva a questionarmos muitos dos resultados das ações do seu grupo. 


Será que ela queria assim tanto que Sofia tivesse morrido? E porquê deixar Ermelinda morrer naquele carro? Porque sim, com aquela revelação final entendemos que Mia esteve sempre por detrás de tudo como uma mente mestra moveu as peças do tabuleiro ao seu belo prazer e que conseguiu enganar até mesmo quem tem acesso a informações privilegiadas. 


Glória já nos estava a deixar agarrados até então mas o final dá-nos uma perspetiva completamente diferente para tudo o que vimos até então e dá-nos um gancho para o futuro que tem, mesmo, de ser aproveitado, sob pena de não termos um entendimento mais profundo sobre a mensagem que os autores nos querem passar. Será que no final das contas tudo isto se resumiu a uma luta interna entre Alexandre e Mia? Será que a revolta dela era contra a sua própria organização e no fundo a guerra foi apenas um evento secundário? Ou será que estamos a sobrevalorizar a personagem e foi tudo fruto das intenções de João? 


Há muitas questões propositadamente deixadas sem resposta e que dão um aula a muitas séries sobre como manter o nosso interesse para uma segunda temporada. É certo que um reaparecimento ou suposta ressurreição é já um clichê do género, mas Glória utiliza esse clichê para colocar em cheque tudo o que vimos até então e ainda acaba por dar ainda mais ênfase à dualidade da personalidade dos seus personagens que desenvolveu até então. Foi uma jogada de mestre que esperemos que seja o suficiente para garantir uma nova leva de capítulos.



À parte da história, Glória faz algo que é raro na ficção nacional mas bastante louvável tendo em conta a dimensão do projeto: Dar destaque a caras menos conhecidas na ficção nacional. O elenco da série é extraordinário mas os personagens de maior destaque foram entregues a atores que não estão, habitualmente, debaixo dos holofotes da popularidade. 


São atores que estão ali pelo seu talento e que entregam personagens com verdade provando, outra vez, que há muito talento escondido no nosso país e que precisamos urgentemente de sair dos circuitos de elencos repetidos que vemos nas novelas. 


Miguel Nunes faz justiça aos elogios que lhe foram dados por Cartas da Guerra, e entrega ao seu João Vidal as nuances necessárias para carregar a história. Os diálogos bem escritos ajudam imenso o personagem, mas há um trabalho notório para até do ponto vista físico vestir a pele de alguém que é um agente duplo. Se repararmos, a figura deste protagonista é alguém que tem de manter as aparências ao mesmo tempo que se fecha sobre si mesmo para não revelar demais e isso nota-se na postura do ator em várias cenas, com expressões esfíngicas que não nos deixam antever aquilo em que ele está a pensar e que são uma ajuda a que as grandes reviravoltas da história funcionem. 


Há aqui dois fatores que jogam muito a favor da nossa ligação com este João, o primeiro é o trabalho de texto e da expressividade de Miguel Nunes e depois o facto do trabalho dele ser pouco conhecido do público que anda apenas por projetos mainstream, porque não sabemos o quanto ele consegue entregar, não sabemos até onde vai a extensão do seu talento, não sabemos o quanto ele nos vai conseguir convencer. E a jogada não poderia ter funcionado melhor, é um caso de amor em que nos cativa aos poucos, em que realmente nos afeiçoamos à figura e que conseguimos entender cada ação por termos uma relação bem construída com aquele personagem que o torna quase familiar. 


Carolina Amaral é outra aposta agradável, que já tinha dado nas vistas em projetos recentes e que aqui tem espaço para brilhar numa personagem que não tem tantas nuances quanto João mas que mesmo assim traz discussões que nos deixam curiosos sobre o seu futuro. É uma representação do que são as meninas da aldeia na época em que tudo se traduzia no respeito pelos costumes, e Carolina entrega isso sem cair em clichês. 


Nesta primeira aventura de Portugal na Netflix, Glória é um excelente cartão de visita para o melhor que se faz por cá. A realização de Tiago Guedes deixa marcas muito boas para quem nunca conectou com ficção nacional, ao mesmo tempo que traz para esta história a identidade do realizador que se prende muito com uma imagem cuidada, com paisagens que nos cativam e que mostram a beleza do nosso país e com uma direção que faz os atores brilharem. 


Em muitos pontos sente-se essa influência, sobretudo para quem viu A Herdade, há similaridades que se notam e e ainda bem porque estamos a falar de uma das obras primas do cinema português. Isto sem falarmos na Banda Sonora que é um verdadeiro elogio ao melhor que se fez na música e que é nota máxima dentro do género, há muito poucas produções que retratem esta época que tenham conseguido contar tão bem a sua história através da música como Glória


Nota-se, ainda, o talento da equipa de escrita que faz convergir história e os assuntos atuais com uma naturalidade que utiliza Conta-me Como Foi como escola e que soube distribuir bem os desafios por várias personagens, não centrando os "bombons" apenas nos protagonistas mas entregando um Gonçalo que deixa espaço para Afonso Pimentel ser o mestre que já conhecemos e que de papel para papel nos convence ainda mais e em diferentes géneros, um Alexandre que puxa o melhor de Adriano Luz e que mesmo sendo um vilão próximo dos muitos que tem interpretado utiliza bem o talento dele e puxa para este enredo as qualidades de atuação que vimos em Sul, por exemplo. 


Faz tudo isto sem se perder, sem nos perder e só nos cativando de episódio para episódio num crescendo que depois da morte de Úrsula entra em modo montanha russa, sem fillers ou sequências desnecessárias que dá uma chapada de luva branca a muitos dos títulos que geram frenesim lá fora. 


Há vontade de vermos mais deste universo de Glória e esse é o maior elogio que podemos dar a esta produção. E conhecendo um pouco do trabalho da equipa que já nos deu personagens tão ricos anteriormente não podemos esperar menos que um boa dose de loucura para uma segunda temporada, porque sim, ela vai acontecer, de certeza. Que venha a confirmação, e que venha mais ousadia como esta, são estes respiros que mostram que a ficção nacional já cresceu demais para um mercado tão pequeno e que é preciso o mundo ver isso.