COMING UP | Dune
Com saudades de uma saga que nos vicie e nos faça entrar num universo novo? Dune é o regresso das grandes franquias ao cinema, numa aposta que tem tudo para se tornar um Lord of The Rings ou um Star Wars para as novas gerações. Numa longa-metragem em que tudo é feito na escala do épico, Dune consegue ousar por se tornar no lugar onde o mainstream e o cinema mais contemplativo se encontram, numa junção de géneros que muitos podem estranhar mas que acaba por funcionar e levar-nos numa experiência sensorial extraordinária. Com rasgos de inspiração que são, em tudo, influenciados pelo trabalho cuidado de Denis Vileneuve vamos levar-vos nesta edição do Coming Up para este novo mundo e falar-te sobre os pontos que fazem de Dune uma paragem obrigatória.
Em todos os projetos grandes de Denis Vileneuve há um alicerce que se reflete em Dune e que faz com que todos os seus projetos tenham uma identidade muito vincada. Quer em Arrival quer em Blade Runner 2049, o cineasta define muito bem o ambiente e imprime em cada guião um código de estilo que individualiza cada projeto.
No fundo é arte, e é como se em cada filme ele se esforçasse para agregar algo mais do que o que é pedido. Aqui, em Dune, vamos para um universo bem distante do nosso e não sentimos que haja uma tentativa de aproximar ou espelhar os nossos comportamentos naquela realidade, como acontece em muitas películas de ficção cientifica e blockbusters, sentimos realmente que estamos a ser apresentados a um outro ambiente, a outras vivencias e a um contexto que está muito além do que conhecemos.
Há ali algumas lembranças da estrutura da construção de ambiente de Star Wars, mas cá entre nós, o cunho do realizador consegue realmente transportar-nos para um mundo novo enquanto Star Wars parecia estar preso a algumas amarras.
É óbvio que o facto de termos um livro tão rico como a obra de Frank Herbert a servir de orientação faz muito por essa criação de universo, mas o que se sente quando encaramos esta versão de Dune é que tudo é feito com um detalhe e um cuidado vão além do tradicional, e que, mais importante que tudo o resto, traz verdade.
Já estamos mais do que habituados a ser apresentados a realidades distópicas com outros mundos, universos, e estruturas, mas em Dune não existe aquela sensação constante de que tudo é um tanto ou quanto plástico. Os cenários são realistas, a fotografia absorve-nos, e até as máquinas são suficientemente imponentes para nos darem a sensação de que tudo é gigante. Mas à parte do aspeto, entrando na história, Dune é majestoso e faz-nos entender em poucos segundos porque é que a obra é até hoje um texto de culto.
Em cada linha de diálogo há informação a reter, nada é um acaso, e tudo é essencial, o que obriga a uma atenção e a uma predisposição que, tal como já tínhamos dito antes, pode não encaixar tão bem nas expectativas do público de blockbusters. Porque por mais que exista em Dune a imagem de um alto orçamento e cenas de luta com uniformes garbosos, o filme dá privilégio à parte mais romântica da obra, explorando conceitos até que eles estejam enraizados para que o publico perceba efetivamente o impacto de cada ação e o que está a acontecer nas entrelinhas da dinâmica política do universo de Dune. Porque sim, Dune é uma longa-metragem que, à sua maneira, é política, num paralelo distante mas ainda assim latente com a corrupção que existe nas altas patentes.
Contemplativo, é a palavra que mais se tem associado a esta versão de Dune. E faz sentido, mas não se pode em momento algum confundir com chato. E porquê? Porque toda essa atenção que é dada para o desenvolvimento de personagem e para as paisagens de cada planeta, tudo isso serve para mostrar a dimensão do problema político que estamos a testemunhar, e serve, ainda, para ressaltar a importância da chegada de um messias.
Se repararmos o tom da narração no arranque da obra pinta-nos um cenário problemático, o foco são os problemas pelos quais o império está a passar, há pouco de bom ou de estável a ser distrito por ali. Algo que se compreende se continuarmos a manter a nossa atenção e entendermos que há demasiadas forças a puxarem para a sua própria agenda sem se importarem realmente com o que se passa com o povo. É um xadrez politico com muitos peões e no qual a maioria das personagens ainda não tem uma figura definida neste primeiro filme.
Por exemplo, enquanto na visão de Harkonnen o rei do tabuleiro é o Duque Leto, as Bene Gesserit sabem que Leto é apenas um cavaleiro na realidade do jogo que acontece naquele império. Essa ideia de que tudo é dúbio e que nada é cem por cento linear é algo que nos instiga, que nos faz teorizar, no fundo é esse o ponto que nos faz olhar para Dune como uma grande saga: Todas as ligações são instáveis, nada é estático, e nem mesmo a profecia parece ser exatamente o que achamos.
Tal como em Harry Potter tínhamos a lógica de que Harry tinha de morrer para que Voldmort fosse vencido, aqui também há múltiplas interpretações para aquilo que é pedido a Paul. Na verdade durante a luta que encerra este primeiro filme até nos podemos questionar se aquela voz que o protagonista contraria não será apenas uma demonstração de força de Mohiam a tentar cumprir a agenda das Bene Gesserits.
Nem mesmo o suposto romance entre Paul e Chani parece ser tão preto no branco como é na maioria das franquias. Custa a crer que num projeto em que há tanto cuidado na construção de um contexto para cada personagem Chani seja apenas uma protagonista estereotipada que vive em prol do amor e da sua animosidade inicial com um par romântico.
Mesmo para um completo leigo neste universo não nos parece que esse seja o caminho que Frank Hebert traçou, mesmo que neste ponto seja muito precoce tentar adivinhar qual será o destino deles, tendo em conta o tipo de papéis que Zendaya defende, a personagem deve abraçar algum tipo de causa que seja transversal para fora do universo de Dune, algo que não será difícil, pois para além de toda a questão política, o filme aborda ainda a igualdade no acesso aos bens essenciais por parte de todos os povos. Uma abordagem que não se fica simplesmente pelo simples cravar de uma causa mas sim como um fator que tem um impacto real na história, o que é um grande acerto e uma chapada de luva branca para muitas franquias que utilizam estes temas apenas para tentarem satisfazer ou agradar às vozes dos críticos.
Mas no meio de uma longa lista de pontos positivos há um que salta à vista e que no decorrer da obra se torna no maior trunfo de tudo isto: Timothée Chalamet. Não há qualquer rasto de dúvidas de que ele é um dos nomes maiores no entretenimento atual. Não há papel que tenha feito em que não consiga calçar os sapatos da personagem de uma forma altamente camaleónica mas em Dune ele eleva a arte a outra nível entregando veracidade a uma personagem que tem poucos traços ou características terrenas. Fá-lo com uma atuação que o envolve como um todo, a expressão tímida e introvertida servem a pele de Paul de uma forma absurda, no melhor sentido da palavra.
Tudo isto ganha uma força ainda maior quando falamos de um ator que foge das características estereotipas que fazem, atualmente, as formulas de sucesso dos blockbusters. Timothée não é mais um ator bombado, não é mais uma cara bonita que saiu de uma qualquer fábrica da Matel, é um rapaz próximo da realidade, e uma prova viva de que o talento ainda prevalece dentro da máquina trituradora de Hollywood.
A melhor cena do filme é com ele, numa simples conversa de pai e filho com o Duque Leto, em que Timothée Chalamet consegue ser uma contracena à altura de Oscar Isaac num diálogo que constrói paradigmas deste universo e destrói preconceitos na medida em que despe o Duque Leto da sua aparência de homem duro de negócios, de política e de chefe de família, e o relega à função de pai numa conexão que é raramente vista neste género de obras.
Oscar Isaac dá-nos, também, vontade de ver mais dele e de projeto em projeto só se torna melhor. É de partir o coração a cena em que se despede, não só por tudo o que isso representa para a história mas porque significa que a participação dele terminou ali quando a nossa vontade era de explorarmos ainda mais a relação de pai e filho dos dois personagens.
E falando de desperdício, Jason Mamoa parece ter sido chamado para se tornar um chamariz de público apenas. O seu Duncan tem potencial para parece ficar no meio do caminho sem que o conheçamos bem e sem que a sua ausência seja, de facto, algo que nos custe. Além de que ele precisa urgentemente de sair do circuito de papéis de camarada bem disposto, não há nada na sua atuação que o distinga da seu Aquaman, e é pena. Foi engolido pela magnitude deste universo sem que fosse sequer dada a chance de sentirmos pena.
Dune não se limita a ser apenas uma coisa. Denis Vileneuve deu-lhe isso. É comercial e blockbuster na medida certa para o tornar apelativo a uma grande franja de público, e para o elevar para junto do patamar de outras grandes sagas. Enquanto que é, também, mais culto e criativo sobretudo nos diálogos que tem força, impacto, e que são humanizados, dão nuances aos seus protagonistas e não os largam da mão até que eles brilhem à nossa frente.
Dune vem preencher um lugar na prateleira dos cinéfilos que estava vaga desde que Lord of The Rings se encerrou e que tem sido colmatada com séries como Game of Thrones ou mais recentemente Foundation, mesmo que esta ultima não tenha o mesmo sentido de grandiosidade das primeiras. Chegou, viu e venceu, conseguindo apresentar e estabelecer um universo que é complexo de ponta a ponta sem esbarrar na barreira de se tornar demasiado explicativo.
Do visual à interpretação, Dune tem tudo para se superar ainda mais numa sequência, porque, tal como a maioria destes projetos de sagas, as sequências têm a tendência a limarem arestas e a tornarem-se melhores. Se já é assim no arranque, então no final será que vamos voltar a levar um pouco do mundo nerd para as grandes premiações? Pelo menos um lugar nas categorias técnicas dos próximos Oscars ninguém lhe tira, e muito merecido. Agora é segurar a ansiedade e aguardar para ver qual é o limite de Vileneuve. Venha a parte dois!
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