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COMING UP | Scenes From a Marriage

Um casamento é muito mais que a união de duas pessoas e o amor romantizado que nos levaram a crer pelas histórias infantis. O “felizes para sempre” tem muito mais que se lhe diga. Viver em comunhão é sobre ultrapassar obstáculos em conjunto ao inesperado sabor da vida. É precisamente sobre isto que fala a nova super aposta da HBO, Scenes From a Marriage que com dois nomes gigantes de Hollywood revisita os conceitos e definições de uma relação a dois, numa perspetiva atual que torna o texto imersivo e nos transporta para além dos diálogos. Um retrato de uma vida a dois que vamos analisar esta semana em mais uma edição do Coming Up. Fica connosco e vem analisar o que está para lá do plano. 

A vida como casal para lá do que é do domínio público ou social é sempre algo muito intimo e pessoal, faz parte daquele limite que até podemos comentar levemente com os nossos amigos ou pessoas próximas mas que tem tantas nuances e ângulos que dificilmente conseguimos ter uma real perceção sobre o que se passa dentro das quatro paredes. 

E é desse conceito de acharmos que aquilo que vemos de um casal em público é um espelho do que se passa nas suas casas que a série parte. Numa suposta narrativa que acompanha um casal de “sucesso”, que supera as expectativas e se mantém fiel e unido para lá de todas as condicionantes habituais que todos os dias fazem mover as nossas vidas. Mas até onde os sorrisos e os carinhos são um indicio de que um casal está, de facto, saudável?

Logo no arranque esse transportar para dentro da realidade daquela comunhão é feita com bastante transparência numa abordagem muito coerente que é bem aproveitada pela série para nos dar uma consciência sobre o que vai na cabeça dos protagonistas. 


É essencial que Scenes From a Marriage seja vista com atenção, porque cada pormenor da linguagem não verbal está a indicar-nos mais uma característica sobre a personalidade de Mira e Jonathan. Eles são muito mais que o pacote perfeito. E aquela entrevista introdutória é um reflexo de que mesmo com uma vida estabilizada, a felicidade poderá não ser tão real assim. E até podemos apresentar já algumas causas, porque há muitas quezílias veladas naquela entrevista, há muitos temas que são abordados e que dariam discussões em privado mas que talvez nunca tenham parado para falar realmente sobre elas. 


E é por isso que no momento em que Jonathan refere qual é o seu papel na educação pela filha em oposição ao de Mira que entendemos que há ali um início de um desconforto, que marca toda e qualquer resposta seguinte. Por mais contrariada que Mira esteja em expor a sua intimidade, tudo isso piora quando naquele momento lhe cai a ficha e entende que há muitas questões que tem evitado e que naquele espaço terão de vir à tona. 


No fundo, é um caminho muito transparente do argumento para nos absorver para dentro daquela união. Coloca a nu muitos assuntos que demorariam algum tempo a serem construídos pelos caminhos normais, ao mesmo tempo que acaba por ser coerente e não parecer acelerado, porque convenhamos que se nos colocássemos a nós e aso nossos parceiros numa situação semelhante, certamente acabariam por existir discordâncias. Talvez não em tantos pontos, mas é por fazermos esse exercício que entendemos que há algo de errado naquele relacionamento. 



Se por um lado temos um homem embevecido pela sua esposa, com reminiscências dos primeiros momentos da sua paixão, por outro temos também alguém que se coloca como figura central do casal não perdendo uma hipótese para de uma forma subtil colocar em cima da mesa as suas queixas perante esse mesmo papel central que representa. 


Lá está, Jonathan é um claro exemplo da dicotomia que a série quer trabalhar opondo a sua imagem de homem apaixonado com a de uma figura que, sem maldade aparente ou sem ter uma consciência disso, é até um pouco controlador. 


Deixando Jonathan, Mira também não é propriamente uma figura tão monocromática como ela se autodescreve. Pelo contrário, ela acaba por dar um ênfase indireto aos questionamentos que Jonathan levanta, com uma necessidade de pautar de forma vincada que ela é mãe e que se vê como tal, quase como se ela se obrigasse a encaixar num determinado padrão de respostas para que no seu entender sinta que está a cumprir com os objetivos e com as expectativas que a vida tem para ela. 


Mas não é só, todo aquele momento inicial serviu para dar um arranque à série de dilemas que Mira tem sobre a sua vida. E até para a fazer entender que a estabilidade da sua relação poderá não a deixar tão feliz assim, apesar da cumplicidade dos dois ser notória e das suas divergências serem resolvidas sem que tenham de descer o nível, de uma forma até bem realista, há muito ali que não funciona e talvez na perspetiva dela exista uma amizade muito forte mas não o amor assoberbado que Jonathan pinta. 


É uma parceria que não resulta mas que nos aguça a curiosidade para ver mais pela forma leve com que nos dão a conhecer os dois protagonistas. É quase como se tivéssemos a conhecer pessoas e não personagens numa transcrição bem apurada do que é a vida de um casal que após doze anos juntos começa a analisar e a entender que nem tudo é cor-de-rosa e que simplesmente nunca pararam para pensar nisso.


E essa lógica é seguida por um texto erudito, cuidado e escrito com classe, mesmo no momento em que se expande e sai fora das definições do que é um matrimónio convencional. Aliás, nesse ponto o episódio torna-se ainda mais interessante por carregar abordagens que poderiam ser discutidas em qualquer grupo de amigos, numa conversa que é descontraída mas onde se carregam em questões pesadas num confronto com realidades que talvez não sejam familiares a todos como a questão da monogamia entre casais. 


É um tema ousado, mas escrito com bom gosto, ao ponto de não parecer como algo colocado ali apenas para prender a atenção do público. É justificado e ainda nos leva a questionar as raízes e definições. Por exemplo, agarrando nos primeiros diálogos quando a investigadora pede para Jonathan e Mira se definirem, Jonathan é muito claro ao descrever-se como “homem, judeu, pai”, conceitos que à primeira vista podem parecer como algo comum, mas que ganham outro peso quando são colocados em confronto com questões que saem do espectro convencional. 


Sabíamos de antemão que a sua reação ao estilo de vida de Kate e Peter não iria ser de uma total abertura porque já tínhamos enraizado antes que a estrutura de Jonathan, a sua educação e a sua visão do mundo, teve bases muito fechadas. Um excelente trabalho do texto que nos faz entender automaticamente as suas reações sem que façamos disso um juízo errado. Até porque, logo depois, temos Jonathan a embarcar numa interrupção de uma gravidez, que já colocada em causa todos os tradicionalismos que o regem, mas que ao mesmo tempo nos revela que a sua paixão por Mira é um pilar tão grande na sua vida, que ele está, até, disposto a abrir mão das suas convicções apenas para não desiludir a sua esposa. 


Temos dois lados da mesma personagem, num único episódio, o que deixa muito pano para mangas naquele que pode ser mais uma pedrada no charco na carreira de sucessos de Oscar Isaac.



É um luxo absoluto revermos a parceria entre Oscar Isaac e Jessica Chastain. A alquimia perfeita que existe nas cenas dos dois transparece uma autenticidade que aumenta a qualidade da série em muitos pontos. É uma simbiose perfeita que cativa mas sobretudo que não deixa espaços em branco. 


Nas primeiras cenas não há momentos estáticos, há sempre algum detalhe que nos obriga a estarmos colados ao ecrã numa atuação onde a entrega é a chave mestra para convencer o público que à primeira vista não escolhe um género tão dramática como opção na hora de entrar de cabeça numa nova série. Oscar Isaac é um portento. Aquela carapaça de durão que estamos habituados a ver nos seus personagens é desfeita com uma facilidade gigante  num personagem que realmente tem tudo para o fazer sair da caixa e onde era urgente a necessidade de olharmos para ele e libertarmos a nossa mente sobre tudo o que já vimos antes com ele. Precisamos de uma tábua rasa para olhar para ele e podermos conhecer uma pessoa nova, tal qual como no mundo real, com os seus defeitos e idiossincrasias. 


Já Chastain, o drama é a praia dela e por isso a surpresa de a ver tão bem num papel como Mira não é tão grande assim, o que não retira qualidade ao seu trabalho, mas está mais dentro do género que já a vimos fazer numa série de filmes conceituados que fazem parte dos tops da maioria dos cinéfilos. Vale muito a pena por termos um reencontro entre as duas estrelas e por podermos ter mais tempo para aproveitar a sua simbiose, mas neste primeiro capitulo, o destaque vai para Oscar Isaac.


Tal como a maioria dos dramas da HBO, também Scenes From a Marriage não é uma história para todos. E ainda bem que não é, porque contada numa perspetiva mais comercial, a trama perdia a sua identidade única e seria apenas mais uma no meio de tantas outras que já conhecemos. 


Fala um pouco a mesma linguagem de Marriage Story, mas não chega a ser tão fundamentalmente realista como o drama da Netflix, talvez por ser uma minissérie e não um filme com uma determinada duração, Scenes From a Marriage tem mais elementos que servem o propósito dramático, mais twists que fogem da naturalidade pura e dura, mas que ao mesmo tempo caminham lado a lado com a representação bonita e apurada sobre o que é de facto um relacionamento entre duas pessoas. 


Nesta nova leva de dramas que tentam despir-se do glamour hollywoodiano e enveredar por um caminho que humaniza mais os seus personagens, Scenes From a Marriage ousa e acerta. Mesmo que não seja aquela história que é um tiro certeiro, como foi Marriage Story, por exemplo, os temas que orbitam neste primeiro episódio já deixam tanto pano para mangas que é impossível não nos deixarmos embalar naquela construção e entender quais são os caminhos que os protagonistas vão tomar. Para uma introdução de uma nova série, o trabalho foi perfeito e cativante, com uma paleta mais monocromática e sorumbática que nos envolve na intimidade deles e que casa muito bem com a iminência de um final daquele matrimónio. 


Em suma este é um daqueles enredos que à partida já sai lançado com muita coisa em cima da mesa e que dá uma lição a muitas séries de sucesso sobre como desenvolver bem os seus personagens. Queremos mais e queremos entender mais.