Header Ads

Crónica • "Pirataria em Portugal: um problema do sistema"

Foto: Direitos Reservados

 Pirataria em Portugal: um problema do sistema

Uma crónica de Luís G. Rodrigues

Ao que parece, uma quantidade significativa de portugueses e portuguesas – mais propriamente cerca de 400 mil (números que, como indica Paulo Santos, diretor-geral da Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais, são “nivelados por baixo”) – sentam-se no sofá com a sua perna de pau e papagaio ao ombro enquanto visualizam conteúdos de forma ilícita, isto é, através de websites ou plataformas ilegais.

A notícia chega-nos através do JN: “A indústria audiovisual em Portugal perde, no mínimo, 200 milhões de euros por ano com a pirataria”[1]. Os números podem ser e são, de facto, assustadores, porém, a notícia só consegue surpreender aqueles que ainda usam uma pala no olho que perderam na sua última batalha contra Jack Sparrow. O artigo prossegue revelando dados curiosos: “no ano passado, "registaram-se mais 55 milhões de visitas a "websites" ilegais", na sequência do confinamento (…) São números perfeitamente arrasadores" e que "representam uma subida de 47% em relação a filmes, por exemplo, e 28% em relação a séries e programas de televisão, estando aqui no meio disto também o "streaming" “[2].

Paulo Santos, o entrevistado neste artigo que, para além de diretor-geral da Fevipe, é também presidente do MAPiNet – que já foi criticado por fechar alguns sites sem uma base fortemente argumentada, como foi o caso do website “Ultimate Music”, em 2016, argumentando que o site não detinha licenciamento para operar em território português, no entanto, e como explica o website português “Pplware”, ligada à plataforma da SAPO, o “site apenas utiliza o conteúdo de forma embebida a partir dos sites que já pagam as respectivas licenças e permitem que o conteúdo seja partilhado, pelo que não infringe qualquer lei relacionada com Direitos de Autor”[3] – segue em defesa das principais corporações distribuidoras destes serviços (“diria que com esta atividade e com este crescimento da pirataria, os titulares de direitos, os produtores e os autores, são fortemente lesados, mas também são lesadas as próprias televisões e os operadores de cabo"[4]) e passa para uma crítica direta ao povo português: “Paulo Santos sublinha que é possível assinar um canal de filmes por sete euros por mês e ver uma "catrefada de filmes e séries", pelo que "hoje já não é uma questão de preço, já está democratizado"[5], supondo, desta forma, que os portugueses pirateiam porque querem e não por uma outra qualquer razão.

Bem, permitam-me discordar.

Apesar de evidentemente errada, a pirataria tem uma causa um pouco mais profunda que a vontade dos portugueses: a sua situação económica. Ora vejamos alguns dados que podem ajudar a compreender os atos cometidos: o ordenado mínimo nacional está, atualmente, estabelecido nos 665 euros mensais[6]; dados de 2018 revelam que Portugal está entre “os países com maior número de horas efetivamente trabalhadas em 2018. Este indicador do Eurostat, que inclui as horas extraordinárias, aponta para uma média de 40,8 horas em Portugal em 2018 e de 40,2 horas em média na União Europeia”[7]; o preço da eletricidade em Portugal é, de acordo com dados de 2019, o oitavo mais caro da europa (“incluindo todos os impostos e taxas, o quilowatt/hora de eletricidade em Portugal (21,54 cêntimos) é agora o oitavo mais caro da UE”[8] e o preço das telecomunicações aumentou, no nosso país, 6,5% enquanto que na União Europeia desceu 10%[9]. Para a acrescentar a tudo isto, devido aos graves efeitos da crise pandémica, 400 mil pessoas foram empurradas para um nível de vida abaixo do limiar da pobreza (“Em comparação com o cenário sem crise, 400 mil novos indivíduos caíram abaixo do limiar de pobreza, definido como 60% do rendimento mediano equivalente, aumentando a taxa de risco de pobreza em 25% como consequência da pandemia de covid-19", concluiu o estudo do Observatório Social da Fundação "la Caixa", da autoria do Center of Economics for Prosperity (PROSPER) da Universidade Católica de Lisboa”[10]).

Desde o salário baixo, às horas de trabalho efetivas superiores à média europeia (cansaço acumulado), ao preço da eletricidade elevado, ao preço elevado das telecomunicações, até à crise pandémica que arrebatou o tecido económico de inúmeras famílias portuguesas, – e que também por isso se vêm confrontadas com as dificuldades de pagar as contas habituais como água, luz, gás, alimentação, etc – , a situação económica dos portugueses está, mais do que nunca, e usando um eufemismo para o leitor não se sentir demasiado deprimido ao ler isto, fragilizada.

Dito isto, é importante voltar a uma das afirmações mais condescendentes e paternalistas de Paulo Santos: “hoje já não é uma questão de preço, já está democratizado [o acesso às plataformas de streaming, canais extra, etc]”[11].  Ou seja, na opinião do mesmo, o acesso a estes serviços está barato e acessível a todos.

Permitam-me, mais uma vez, discordar.

Vamos, então, mais uma vez, a números (todos os valores apresentados dizem respeito a uma quantia mensal): a subscrição à plataforma DisneyPlus custa, à data, 8,99€[12], o plano standard da Netflix vai passar a custar 11,99€[13], a Filmin custa 6,95[14], a SportTv, ronda um “modesto” valor de 25,99€[15], a Amazon Prime 5,99€[16], a TVCine 10€[17].

Um dos chamados “pacotes” mais acessíveis da NOS, por exemplo, corresponde a um valor de 36,99€, com internet, televisão e telefone.

Suponhamos que a família aderente é fã de futebol e de séries televisivas. Pois, se quiser ver jogos de futebol da Liga Portuguesa e Inglesa, por exemplo, terá que pagar os 25,99€ extra da SportTv, mais, a título de exemplo, os 11,99€ da Netflix de modo a ter um leque mais vasto e atualizado de opções atrativas. De 36,99€, passa a pagar 74,97€ mensais em telecomunicações.

A afirmação de Paulo Santos fica, desta forma, sem qualquer validade, visto que o acumular de despesas em relação ao ordenado mínimo é particularmente elevado. Ou estará ele a pensar apenas em agregados familiares favorecidos? Em famílias com uma riqueza geracional acumulada confortável? Em cidadãos com cargos profissionais bem remunerados? Na minoria da população? Não têm o mesmo direito de acesso a conteúdos culturais os pobres e ricos? Em teoria sim, na prática, injustamente, não. O dinheiro é o que define o limite da legalidade. Como escreveu Antonio Gramsci, filósofo e ativista italiano: “Na sociedade capitalista, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa. Quando uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação torna-se imediatamente ilegal”[18].

A pirataria é errada? Sim. O imperativo categórico kantiano não me deixaria dizer outra coisa. Mas há razões para que esta aconteça; razões sérias e descurá-las é insensato. Se o povo ingressa neste ato ilegal, é porque o sistema estatal não lhe deu condições para que o fizesse legalmente, já que a vontade de ter acesso à cultura está claramente lá, refutando, assim, a tese de que a curiosidade cultural do povo português está morta. Não está, está bem viva. Mas neste sistema económico respira-se dinheiro e para muitas famílias esse tipo de oxigénio é escasso.

 

 Notas:

[1] «Indústria audiovisual em Portugal perde 200 milhões de euros por ano com pirataria». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jn.pt/nacional/industria-audiovisual-em-portugal-perde-200-milhoes-de-euros-por-ano-com-pirataria-14034665.html

[2] Indústria audiovisual em Portugal perde 200 milhões de euros por ano com pirataria». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jn.pt/nacional/industria-audiovisual-em-portugal-perde-200-milhoes-de-euros-por-ano-com-pirataria-14034665.html

[3] Pplware. «MAPiNET bloqueia site sem qualquer fundamento (outra vez)», 28 de Janeiro de 2016. https://pplware.sapo.pt/internet/mapinet-bloqueia-site-sem-qualquer-fundamento-outra-vez/.

[4] «Indústria audiovisual em Portugal perde 200 milhões de euros por ano com pirataria». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jn.pt/nacional/industria-audiovisual-em-portugal-perde-200-milhoes-de-euros-por-ano-com-pirataria-14034665.html

[5] «Indústria audiovisual em Portugal perde 200 milhões de euros por ano com pirataria». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jn.pt/nacional/industria-audiovisual-em-portugal-perde-200-milhoes-de-euros-por-ano-com-pirataria-14034665.html

[6] Economias. «Salário mínimo nacional em 2021». . https://www.economias.pt/salario-minimo/. 

[7] «Quantas horas Economias. «Salário mínimo nacional em 2021». . https://www.economias.pt/salario-minimo/. trabalha em cada país da Europa? Veja o mapa». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jornaldenegocios.pt/economia/emprego/detalhe/quantas-horas-se-trabalha-em-cada-pais-da-europa-veja-o-mapa.

 

[8] Suspiro, Nuno Vinha, Ana. «Preço da eletricidade em Portugal é o oitavo mais caro da UE. Melhorou dois lugares face a 2018». Observador. Acedido 15 de Agosto de 2021. https://observador.pt/2019/11/26/preco-da-eletricidade-em-portugal-e-o-setimo-mais-caro-da-ue/.

  

[9] ANACOM. «Preços das telecomunicações aumentaram 6,5% em Portugal e na União Europeia desceram 10,8%». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://anacom.pt/render.jsp?contentId=1601569.

[10] SIC Notícias. «Crise causada pela pandemia atirou 400 mil pessoas para a pobreza em Portugal». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2021-06-22-Crise-causada-pela-pandemia-atirou-400-mil-pessoas-para-a-pobreza-em-Portugal-281ff0e5

[11] Indústria audiovisual em Portugal perde 200 milhões de euros por ano com pirataria». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.jn.pt/nacional/industria-audiovisual-em-portugal-perde-200-milhoes-de-euros-por-ano-com-pirataria-14034665.html

[12] «Disney+ | A casa da Disney, Pixar, Marvel, Star Wars, National Geographic e Star.» Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.disneyplus.com/pt-pt.

[13] Cardoso, Joana Amaral. «Netflix sobe preços em Portugal a partir desta quinta-feira». PÚBLICO. Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.publico.pt/2021/08/12/culturaipsilon/noticia/netflix-sobe-precos-portugal-partir-quintafeira-1973874

[14] Filmin. «Subscreve-te a Filmin». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.filmin.pt/premium.

 

[15] SPORT TV. «SPORT TV - Adira à SPORT TV». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.sporttv.pt.

 

[16] 4gnews. «Amazon Prime Video: o preço, vantagens e o catálogo em Portugal». Acedido 15 de Agosto de 2021. https://4gnews.pt/amazon-prime-video-portugal/.

[17] MEO. «TV Cine - TV». MEO. Acedido 15 de Agosto de 2021. https://www.meo.pt/tv/tematicas/filmes-series/tv-cine.

[18] Fundação Dinarco Reis via Capitalismo em desencanto. - https://fdinarcoreis.org.br/fdr/2016/11/29/gramsci-sobre-a-legalidade (tradução de Fernando Araújo) Primeira Edição: Socialismo e Fascimo. L’Ordine Nuovo 1921-1922