COMING UP | Black Widow

De volta ao cinema, a Phase 4 do MCU já dá cartas no grande ecrã e mantém de forma coerente o storytelling mais terreno que se pretende ver explorado nesta nova sequência do universo Marvel. Natasha pode não ser a maior super heroína mas tem background e carisma de sobra para agarrar uma longa-metragem sozinha, juntamos a isso a bonita homenagem a uma das Avengers Originais num filme que apesar de ter uma heroína como personagem principal não se perde no caminho do feminismo. Dentro das linhas gerais do MCU este é provavelmente o maior filme de género apresentado até agora e nós vamos falar-te dele em mais uma edição do Coming Up, fica connosco. 

No sentido inverso ao da DC com Wonder Woman, Kevin Feige soube apresentar um filme com uma personagem central feminina sem que o grosso da história fosse mergulhado numa discussão sexista. Enquanto o empoderamento feminino e os abusos perante as mulheres são fios condutores da narrativa, estes não são os temas principais nem sequer as maiores discussões dentro da história de Black Widow, provando logo de início que esta não é uma produção costurada na medida de preencher lugares comuns. 

Pelo contrário, o enredo consegue ser híbrido ao ponto de ter todo o lado fantasioso que impera neste estilo de cinema, mas também uma abordagem bem mais justa ao estilo de filmes com espionagem sem deixar que a sensualidade tome conta da história como acontece em Atomic Blonde ou Red Sparrow. Enquanto esperávamos que estas duas películas fossem uma boa base de comparação para explorar o universo de Natasha, a Marvel volta a fazer diferente e a vincar que não precisa de usar a sensualidade das mulheres como recurso, na verdade toda a construção de Black Widow tem a seu favor a imparcialidade de género, não fosse a questão original da Sala Vermelha ser centrada no género feminino e poderíamos ter um homem como protagonista sem mexer um único traço da história.

Claro que há detalhes que receberam uma maior atenção por termos uma mulher como protagonista e a Marvel que está sempre a surfar a onda da atualidade não os deixou cair por terra, contudo, é bom ver como a coerência do texto supera qualquer tema maior e a confiança do estúdio em contar a história das Black Widows sem cair nas teias das guerras entre sexos. 

Na verdade, a maioria dos braços que compõem o império da Disney tem apresentado discursos nas suas produções sobre a aceitação e o respeito pela individualidade do outro, logo se nesta produção seguíssemos a tendência de acrescentar um contexto feminista a Natasha essa jornada poderia ter sido em vão pois estaríamos a desequilibrar a balança social. Felizmente isso não acontece e a Natasha que vimos até agora na Infinity Saga é exatamente a mesma personagem que chega em Black Widow, com as mesmas emoções mas sobretudo com as mesmas dúvidas. 

É um filme de origem imbuído num respeito imenso pelo percurso que foi feito até agora pela personagem, que responde na medida certa às dúvidas que ela foi apresentando ao longo dos anos, enquanto nos fala sobre o que é o verdadeiro sentido de família. Há um esforço gigante para não vulgarizar os laços apresentados. Sabemos que apesar de leal Natasha é um tanto ou quanto individualista, por tudo o que passou até aqui, e é bom ver como o filme não se esqueceu de um traço tão fundamental, todas as ligações são conquistadas com suavidade e com verdade, lembrando sempre as mágoas do percurso feito até então enquanto a empatia vai tomando cada vez mais conta da personagem ao ponto de ser a justificação perfeita para os eventos de Avengers: Endgame. Para quem ainda tinha questões sobre o sacrifício de Natasha, Black Widow vem responder a tudo sem parecer forçado enquanto no meio caminho nos apresenta uma das potenciais melhores personagens do futuro da Marvel.

Yelena é o grande destaque de Black Widow num trabalho incrível de Florence Pugh que mostra muito bem ao que veio nesta sua incursão no MCU. Além de chegar numa fase em que as personagens têm mais espaço do que no tempo de Scarlett Johansson, chega também com o sentido de humor refinado que ao longo dos anos os guionistas da Marvel souberam apurar e que muitas das vezes transcreve em diálogos os comentários do público. Yelena faz essa função sem perder o ar de durona e num contexto de vida que lhe dará à priori uma maior empatia com os outros personagens, superando de uma forma muito mais rápida as questões de confiança para com os outros. 

À parte de ser fonte de piada, o trabalho que o filme faz para distanciar a personalidade de Yelena e Natasha é digno de nota por ser feito logo desde os primeiros frames, é contínuo, e parece ter objetivos muito claros. Ela teve uma experiência de infância diferente da de Natasha que lhe dá uma humanidade muito maior e que remete muito mais para a protagonista de Red Sparrow enquanto Natasha se aproximou sempre muito mais da personalidade da personagem central de Atomic Blonde. Mas mais do que estabelecer comparações, o carisma de Florence Pugh é capaz de nos envolver de uma forma muito peculiar ao ponto de nos apaixonarmos pela personagem logo nos primeiros minutos de ecrã, o que é ótimo porque pela cena pós-créditos e por todos os spoilers que já lemos sabemos de antemão que ela vai ser um dos elementos que vai carregar o legado dos Avengers de agora em diante, felizmente estamos muito bem entregues e cada vez mais o potencial da nova equipa mostra os rumos diferentes que a jornada do MCU tenta transcrever no cinema e nas séries, é cada vez mais interessante e diferente, por mais que as origens acabem por ser semelhantes.

Mas já que abordamos o elenco, falemos da protagonista. Scarlett Johansson tem vindo, cada vez mais, a provar-se como atriz multifacetada que é. E por mais familiarizados que estejamos com a personagem, ainda há pontos em que nos consegue surpreender pela sua interpretação que foi maturada ao longo dos anos. 

Ela já fez dezenas de filmes de ação mas em Black Widow consegue cruzar a fronteira das lutas para nos dar conteúdo dramático que parece ter vindo diretamente dos personagens de filmes ditos de Oscars que tem feito recentemente. Além de camaleónica e de ter um excelente suporte num guião que não lhe dá margem para errar, Scarlett consegue entregar-nos a empatia que precisávamos de sentir pela personagem, aliás, depois de vermos Black Widow, o sacrifício de Natasha ganhou um peso ainda maior. 

Não só pelo background maior que temos da personagem, mas por entendermos como ela estava finalmente numa fase em que já conseguia relaxar as suas emoções, ela estava pronta para voltar a entregar-se aos outros como se o trauma que vemos no arranque de Black Widow e que já nos tinha sido relatado estivesse finalmente a ser superado. Infelizmente não vamos ver mais desenvolvimentos disso no cinema, mas talvez esse legado seja a chave que conecta Yelena com a nova formação dos Avengers, custa a crer que o percurso de Natasha tenha acabado por ser em vão e sirva apenas para criar ódio como vemos na cena pós créditos de Black Widow. Na verdade, o mais provável é que Yelena entre para a lista de personagens que vão fazer “terapia” pessoal nas séries do Disney+ para se entender melhor.

A linguagem de Black Widow segue a mesma lógica mais terrestre de The Falcon and The Winter Soldier sem a megolómania típica da Marvel e com narrativas tão realistas quanto possível dentro de universo que só por si é bastante distópico. 

Não é, de longe, a melhor produção recente da Marvel Studios mas também não compromete enquanto oferece uma bonita homenagem. O filme perde por se arrastar em alguns momentos ao passo em que relega para segundo plano alguns dos seus personagens numa corrida contra o tempo em que lhe falta espaço para dar um background coerente a cada um antes dos eventos finais. Enquanto temos Natasha e Yelena exploradas e apresentadas com um cuidado minucioso, quando falamos de Melina e Red Guardian a história é outra. 

Sim estamos na Rússia onde tudo é mais frio e as personalidades são diferentes por não termos uma onda de afetos tão grande quanto aquela a que estamos habituados, contudo, estes dois personagens, os pais de Natasha, acabam perdidos na imagem de dois traidores sem coração. Mesmo no momento em que caminhamos para a redenção deles falta algum trabalho do texto que nos faça importar-nos verdadeiramente com o sacrifício que estão dispostos a fazer. 

Falta conexão ao ponto de nos importarmos, enquanto o filme desperdiça David Harbour num humor bacoco que não casa em nada com o estilo do texto das produções com o selo Marvel, e entrega a Rachel Weisz uma mulher de pedra com muito pouco impacto na trama e que em pouco ou nada faz justiça ao talento da atriz. No fundo, parece que ela foi obrigada contratualmente a fazer parte do elenco, mas não transmite qualquer conexão com os eventos, com a narrativa e pior que isso parece fora do seu habitat natural quando tinha aqui uma opção para fugir do registo em que estamos habituados a vê-la. 

Rachel é uma carta fora do baralho num MCU que mesmo com grandes estrelas nos elencos sempre soube gerir os egos nos ecrãs, é talvez a primeira falha gritante num casting da Marvel Studios.

Não podemos dizer que Black Widow seja perfeito, não é, e se entrarmos pelo lado técnico vemos algumas falhas nos efeitos especiais e nas lutas que nem parecem ter sido feitos pela mesma equipa que nos tem dado alguns dos melhores exemplos do género no cinema. Há alguns momentos de falhas severas que nos lembram o malogrado Iron Fistda Netflix. 

Mas à parte do que corre menos bem a essência dos personagens que já conhecemos e dos que vão ter maior impacto no futuro está no ponto certo, entregando uma narrativa que é coerente e que prende apesar do ritmo dos eventos não corresponder àquilo que seria expectável numa película que tem a espionagem a servir de grande motor. 

Podemos dizer que é uma despedida em grande e merecida pelo percurso que Scarlett Johansson fez pelo mundo nerd, apesar de que todo este trabalho de construção não parece algo pronto para ser desperdiçado, talvez o futuro nos reserve surpresas e o Multiverso traga uma cena de despedida entre Natasha e Yelena que mude o rumo dos acontecimentos mais negros que o MCU parece ter reservado para a personagem de Florence Pugh. 

Há muitos caminhos em aberto deixados pelo filme, com a Marvel a deixar propositadamente easter eggs para usar no futuro, apesar de neste momento nos parecer que só daqui a muito tempo vamos voltar a ver referências às Black Widows da Sala Vermelha, para marinar o impacto, até porque antes disso temos muitas mais questões em cima da mesa com uma maior urgência para resolver. 

Esperemos que não seja a última vez que vemos o talento de David Harbour e que no futuro lhe façam maior justiça ao seu talento. Quanto a Rachel Weisz, que a usem como exemplo para provar que nem sempre um nome sonante é sinónimo de uma boa personagem. Centremo-nos no futuro risonho que Yelena vai trazer, venham Dark Avengers, temos estado à vossa espera!