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Entrevista DOP - Vera Mahsati

Fotografia: Ricardo Torb

Vera Mahsati é uma reconhecida bailarina e professora nacional de Fusão. Na terceira edição desta iniciativa entre Fantastic - Mais do que Televisão e o projecto Dança Oriental Portugal, a artista falou-nos do seu percurso artístico, sobre o seu projecto Bellydance Rocks e o The Bellydancers Club, as vantagens que a Psicologia lhe traz para o ensino de Dança, sobre a investigação académica no campo da Dança Oriental, sobre a polémica que envolve o nome 'Tribal Fusion Bellydance', entre outros temas.

1. Como surgiu a tua paixão pela Dança e, em particular, pela Dança Oriental e Fusão?
Desde a minha infância que gostava muito de dançar e imitar as coreografias que via na televisão, em videoclips, filmes ou outros programas. Apesar disso não fiz aulas de dança em criança. Não era uma coisa que as minhas vizinhas ou alguém que eu conhecesse fizesse, e eu também nunca pedi aos meus pais para me inscreverem. Fiz ginástica, fiz aeróbica, fiz parte das equipas de voleibol e futebol durante o ciclo preparatório, mas a dança nunca apareceu como uma possibilidade na minha infância. É curioso pensar nisso. O meu caminho até chegar à dança passou primeiro pelo malabarismo e teatro, e depois pelo Yoga e Pilates – e foi neste percurso de descoberta do corpo e movimento como ferramentas de auto-conhecimento e/ou expressão artística que acabei por ir fazer aulas de dança. Experimentei várias danças, do Hip Hop à Dança Contemporânea até que acabei por me apaixonar pela Dança Oriental. Descobri-a já com 20 e poucos anos, e a partir daí frequentei sempre aulas de Dança Oriental várias vezes por semana e todos os workshops e cursos que encontrava e me pareciam credíveis. Foi uma paixão avassaladora que mudou o curso da minha vida e me levou a deixar a minha carreira académica já com o doutoramento feito. Encontrei na Dança Oriental uma ferramenta de expressão artística única, e perfeitamente sintonizada comigo. A Fusão veio oferecer um leque de possibilidades muito maior, e o que me levou a procurar mais formação nessa área foi o facto de me identificar com uma forma de dançar que se pudesse adaptar a vários estilos de música, várias personagens e conceitos, através da qual me pudesse exprimir artisticamente de uma forma mais pessoal.

2. Qual o significado do nome ‘Mahsati’ e porque é que o escolheste como nome artístico?
O nome Mahsati é um nome persa que resulta da junção de “Mah” (Lua) e “Sati” (Senhora). Significa algo como Senhora ou Dama da Lua, e este nome apareceu-me um dia em que estava a pesquisar poesia persa antiga na internet. Sou fã dos Rubaiyat do Omar Khayyam há muitos anos, tendo lá chegado via Fernando Pessoa (um autor que marcou muito a construção do meu imaginário pessoal e artístico), e andava a pesquisar mais sobre ele e procurava outros autores do mesmo período. Eis que me surge um poema de Mahsati Ganjavi, contemporânea do Omar, que ressoou imenso em mim. Eu andava à procura de um nome artístico e achei o nome tão bonito que acabei por decidir adoptá-lo homenageando assim esta mulher incrível. Achei que fazia sentido escolher o nome de uma poeta, pois a poesia foi a minha primeira forma de expressão artística, e eu acho a dança muito parecida com a poesia. A poesia é um estilo literário com ritmo, com forma, que se liga muito à experiência. É quase sensorial. Exprime o momento, a consciência, emoções e sensações momentâneas – a poesia é como se fossem palavras em movimento, é escrita pela ser lida, ouvida, saboreada quase. Há qualquer coisa de efémero em ambas (poesia e dança), e de plástico – quem lê ou ouve um poema – muda-o de alguma forma. Também a dança é performativa e quem a vê dá-lhe sentido. Eu gosto muito de improvisar e cada vez improviso mais porque gosto de explorar a conexão com o momento, a música, as pessoas e deixar-me literalmente “transpirar” cá para fora essa ligação intuitiva e mágica que surge de forma pré-consciente – sem que eu pense, planeie, construa – limito-me a Ser. A minha relação com a poesia sempre foi muito assim: colocar uma música, olhar uma paisagem – e deixar sair de rajada. Improvisando com as palavras, sem pensar muito. Normalmente são sempre os meus melhores poemas ainda hoje. Só por curiosidade, partilho convosco que comecei a escrever aos 12 anos inspirada pelos poemas da Florbela Espanca. Fui publicando algumas coisas em blogues e às vezes escrevo para os meus projectos de dança e videodança. Um dia destes pego nas caixas cheias de cadernos de poemas cá em casa e ainda publico alguns. A maior parte são só devaneios, mas são devaneios que souberam tão bem e que me deram este contacto com o meu lado intuitivo e criativo desde miúda.

3. És professora de aulas regulares em Mafra e na Venda do Pinheiro. Podes falar-nos um pouco sobre o teu método de ensino?
O meu método de ensino procura combinar várias componentes: consciência corporal e respiratória, preparação física, treino técnico detalhado, noções de musicalidade e informação cultural e histórica. Gosto de proporcionar um ambiente no estúdio ou sala de aula em que as alunas e alunos possam sentir cumplicidade, pois acredito que aprender em grupo e criar em conjunto com outras pessoas torna a aprendizagem mais estimulante e completa. Dançar com outras pessoas num ambiente de confiança e camaradagem é uma experiência que eu gosto de ajudar a proporcionar, pois sinto que a Dança deve ser uma oportunidade para nos mostrarmos ao mundo e nos exprimirmos artisticamente, mas também para conhecer o Outro e lhe oferecer o espaço para que se possa expressar também. Sentir a energia de um grupo a criar em conjunto e generosidade é incrível. Tenho descoberto que as mulheres podem empoderar-se mutuamente se sentirem que podem confiar umas nas outras e sou surpreendida todos os dias pelas minhas alunas e a sua generosidade e espírito de entre-ajuda. Sou uma sortuda pois tenho vindo a encontrar alunas que estão perfeitamente sincronizadas com esta minha forma de trabalhar, e que me inspiram todos os dias.

Fotografia: Daniel Martins

4. Desde que resides em Mafra, há cerca de 4 anos, como analisas o desenvolvimento da Dança Oriental e da Fusão neste concelho? 
Talvez esteja aqui há pouco tempo para poder oferecer uma análise aprofundada sobre isso. Para além de mim só conheço mais uma bailarina dedicada a esta dança aqui no concelho, a Safiyah, com quem já colaborei. Acho que apesar de sermos poucas somos ambas profissionais com imensa iniciativa na divulgação, promoção e ensino desta dança, e por isso creio que quer a Dança Oriental quer a Fusão irão ter óptimas condições para se desenvolver aqui. O nosso concelho tem poucas instalações preparadas especificamente para aulas de Dança, a YouDance na Venda do Pinheiro é a única escola de Dança propriamente dita em Mafra, mas existem vários espaços com condições para oferecer aulas de Dança. Neste momento colaboro com a YouDance onde ensino Dança Oriental e promovo workshops temáticos mensalmente. Não só têm um espaço com instalações muito boas, como estão muito receptivos a iniciativas inovadoras ao nível da formação, por isso estou a gostar imenso de colaborar com eles. Vamos lançar em Julho o conceito “Saturday Night Fever” que fica entre uma aula de dança e uma saída à noite. Se tiverem curiosidade enviem email para vera.mahsati@gmail.com para vos adicionar e terem acesso às próximas datas.
Actualmente preparo também o regresso às aulas presenciais do conceito “Fusion Dance Studio” que iniciei em Mafra em Setembro de 2020, e em Julho vou passá-lo para a Rat’ Art, um espaço polivalente ligado às Artes, mesmo ao pé do Convento de Mafra. Em Julho vamos começar com um Intensivo de Verão e depois em Setembro iniciaremos as aulas regulares. Estou muito entusiasmada com o retomar deste projecto, sobre o qual podem seguir tudo em @fusiondancemafra.

5. Há 7 anos que vives apenas do teu trabalho enquanto artista. Quais são as maiores vantagens e também os maiores desafios que tens de enfrentar no teu dia-a-dia por viveres da dança?
A maior vantagem é fazer algo que me apaixona todos os dias. Acordar entusiasmada com o meu trabalho é maravilhoso, especialmente depois de anos na carreira académica em que estava habituada a sentir-me desmotivada e cansada constantemente. Agora às vezes é difícil é desligar e focar-me na minha vida pessoal, tal é o entusiasmo com os projectos e actividades que estou a desenvolver. Claro que é muito desafiante lidar com a instabilidade financeira e a incerteza laboral constantemente, mas eu já lidava com isso na academia. A verdade é que eu gosto de trabalhar por conta própria e gosto da adrenalina de fazer propostas, lançar eventos e aulas e ver as coisas crescer do zero. Agora fala-se em espírito empreendedor, não gosto especialmente da palavra e muitas das conotações a ela associadas, mas eu acho que tenho isso, e é algo que partilho com o meu pai. O que torna tudo mais difícil é o facto de não existir um estatuto laboral adequado aos trabalhadores da Cultura, muitos deles trabalhadores independentes (está-se a discutir agora uma proposta que eu acho insuficiente). A instabilidade, por exemplo, não se resolve com contratos em todos os casos, pois artistas como eu dificilmente seriam contratados por uma entidade publica ou privada. Têm de existir condições específicas para nós em termos de IRS, IVA e Segurança Social que ajudem a compensar a intermitência e instabilidade laboral. A pandemia veio mostrar como este sector está vulnerável e precisa de soluções específicas.


6. És doutorada em Psicologia e trabalhaste como Psicóloga Clínica, tendo até já leccionado um workshop sobre Psicologia da Dança. Em que é que este background de Psicologia te auxilia na tua profissão de professora e de bailarina?
A minha formação em Psicologia é uma ferramenta fantástica. Faz muita diferença na interacção e relação com a(o)s aluna(o)s, ajudando-me a ler melhor as pessoas e também a compreender o seu ponto de vista. Devido a esta formação estou mais preparada para identificar emoções negativas em mim própria e analisar o que estou a sentir em vez de reagir directamente. Por exemplo, é comum os alunos exprimirem as suas inseguranças de uma forma que pode parecer uma agressão contra um professor, ou que põe em causa o seu trabalho e na verdade é apenas uma expressão do seu embaraço ou medo de falhar. Eu costumo dizer que as minhas alunas trazem ao de cima o melhor de mim pois numa aula estou com uma postura profissional e reajo de forma profissional, tentando sempre servir o interesse de quem estuda comigo e perceber o que precisam, em vez de reagir só com base no que eu estou a sentir. Esta disponibilidade para tentar ir ao encontro do outro e perceber a sua perspectiva é uma grande mais valia. Depois há ainda todo o treino em Psicologia da Aprendizagem, que me dá noções sobre como é que as pessoas aprendem algo novo e de como a informação deve ser transmitida através de diversas metodologias, pois as pessoas aprendem através de diversos métodos. Ao nível do trabalho como bailarina e coreógrafa a minha formação académica também tem impacto pois ajuda-me a ter mais ferramentas para pensar sobre um tema ou conceito, descrevê-lo e desenvolvê-lo teoricamente antes de passar à prática. O hábito de definir conceitos e de os aprofundar permite pensar sobre as coisas para lá do óbvio, e acaba por estimular a capacidade de ter uma perspectiva fresca e criativa sobre a nossa arte.

7. És também investigadora sobre a história das danças do Médio Oriente e Norte de África e a sua percepção e interpretação no contexto Ocidental, tendo já apresentado duas comunicações em universidades nacionais. Achas que a Dança Oriental é suficientemente discutida e pensada a nível académico? Porquê?
Durante estes anos em que tenho feito algum trabalho de investigação a título independente, apresentado em contextos académicos, tenho vindo a perceber que existe um interesse crescente, a nível internacional, sobre estudar a história e implicações sociais/culturais da Dança Oriental. Cada vez vejo sair mais artigos em diversas revistas internacionais sobre estes temas, e mais livros a ser publicados. A qualidade das publicações também tem aumentado, e cada vez mais encontramos pesquisas feitas numa verdadeira perspectiva científica. Nem sempre foi assim. No passado encontrávamos livros ou artigos que se baseavam mais em opiniões do que factos, em coisas que se ouvem dizer do que numa pesquisa autêntica das fontes citadas. Por isso eu acho que estamos num bom caminho, e espero que esta informação chegue ao grande público interessado na Dança Oriental – nomeadamente quem ensina e estuda – e possa ajudar a desvendar mitos e a aumentar a qualidade da informação que circula nas aulas e workshops pelo mundo fora.

8. Em 2016, criaste o projecto Bellydance Rocks, onde juntas a Dança Oriental de Fusão com o universo do Blues, Rock e Jazz. Porque resolveste fazer esta junção?
Esta junção resulta da minha paixão pessoal por estes estilos musicais, e a minha vontade de explorar esse repertório musical de uma forma consciente e consistente. Durante o meu percurso na Dança Oriental via algumas pessoas dançar música rock, mas na maior parte dos casos limitavam-se a dançar da mesma forma que dançavam música árabe ou outras músicas usadas na Fusão – ou seja, faziam os mesmos movimentos, estilizados na mesma forma, as mesmas expressões faciais, tudo muito idêntico independentemente da música que estivesse a tocar – e eu queria encontrar a abordagem certa para fazer realmente uma fusão que traduzisse a cultura ligada a estes estilos de música. Começou assim um processo de descoberta e exploração, em que fui pesquisando a fundo a história dos Blues e do Rock (e mais tarde do Jazz), tentei perceber a ligação histórica entre os Blues e o Rock, as características que diferenciam vários sub-estilos dentro deste universo musical , e procurar vocabulário que possa ajudar a interpretar cada um de uma forma mais autêntica e criativa. Fui buscar coisas ao Authentic Solo Jazz e ao Charleston, danças vintage que se relacionam com os Blues e o Jazz, deixei-me inspirar pela cultura associada a cada sub-estilo e cada época, e a forma como se dança cada sub-estilo socialmente de forma natural e sem treino, procurando formas de adequar a técnica de vários estilos de Dança Oriental e Fusão aos Blues, Rock e Jazz.
O projecto foi crescendo à medida que fui produzindo espectáculos a solo dentro deste estilo em Portugal, apresentando solos em festivais internacionais criados com base nesta abordagem, e colaborando com dj’s e eventos ligados ao rock, como o The Voodoo Club, por exemplo. Mais tarde começaram também colaborações com músicos que resultaram da visibilidade do meu trabalho neste âmbito. Desde 2018 que tenho colaborado com o Victor Torpedo, um dos maiores nomes da música rock nacional, com o nosso “Victor Torpedo & Vera Mahsati Show”, e esta experiência tem sido uma excelente oportunidade para aplicar estas noções que fui desenvolvendo, e ao mesmo tempo desconstruí-las e voltar a construir.
Actualmente estou a oferecer um curso online onde partilho a minha abordagem e o que fui descobrindo neste processo de pesquisa pessoal, e espero que em breve mais bailarinas possam aplicar estas noções no seu trabalho e encontrar o seu próprio caminho a explorar este universo musical. Seria óptimo ter mais pessoas a fazer fusões autênticas e conscientes com estes estilos de música, que resultem de um processo de estudo e que possam trazer inovação ao meio da Fusão.

Fotografia: Ricardo Torb

9. Durante este período de pandemia, tiveste a iniciativa de criar o ‘The Bellydancers Club’. Podes falar-nos um pouco sobre este projecto?
O The Bellydancers Club resultou das palestras sobre História da Dança Oriental que dei online em 2020. Em ambas as edições, o período de Q&A extendeu-se sempre e as bailarinas demonstravam imensa vontade de ficar à conversa sobre vários temas, nomeadamente a crise no meio do ATS e Tribal Fusion. Desde há uns anos que esta discussão está no ar e com a pandemia intensificou-se. A ideia foi criar reuniões online que oferecessem um espaço seguro para partilhar experiências e reflectir sobre a nossa forma de arte, oferecendo uma plataforma para bailarinas de vários pontos no mundo interagirem. Estamos a viver um período de reflexão sobre a nossa dança, a sua história e relação com o Orientalismo, Colonialismo e Pós-colonialismo, e isso é muito interessante apesar do clima de tensão e dúvida, e algum exagero e policiamento que tem vindo a gerar. Espero que as pessoas venham a concentrar a sua atenção naquilo que é realmente importante: encontrar uma forma de continuarmos a nossa arte com respeito uns pelos outros.

10. O nome ‘Tribal Fusion Bellydance’ parece ser, para muitas artistas da área, um nome pouco adequado para designar o trabalho com a fusão. Podes explicar-nos a razão?
Agora vais ter de me perdoar a resposta longa mas é preciso voltar atrás na história do estilo para que se perceba esta polémica recente. O nome “Tribal” em “Tribal Fusion” deriva do “Tribal” em ATS (ou American Tribal Style, um estilo associado sobretudo à improvisação em grupo). Bailarinas que tinham feito ATS ou estudado estilos derivados do ATS como a Rachel Brice, por exemplo, começaram a fazer fusões a solo que juntavam elementos do ATS com elementos de American Cabaret Bellydance e outros estilos de Dança Oriental e este novo estilo emergente começou a ser chamado de “Tribal Fusion”. Com a tour mundial das Bellydance Superstars este estilo em desenvolvimento, que não se sabia ainda bem o que era, começou a ter imensa visibilidade e o seu sucesso fez com o “Tribal Fusion” se tornasse de repente um novo estilo dentro do mercado global da Dança Oriental.
Eu sempre achei que o nome “Tribal Fusion” era problemático porque não é uma boa designação para um estilo tão contemporâneo e com uma influência tão grande de estilos ocidentais. O nome pode até dar uma ideia errada ao público não familiarizado com os sub-estilos dentro da Dança Oriental, que podem esperar algo diferente. Segundo pude perceber a polémica com o nome começou nos EUA, onde o uso da palavra “tribal” foi feito de forma depreciativa para referir pessoas nativas do território, os chamados Índios Norte-Americanos. A certa altura foi inevitável que alguém questionasse como e porque é que mulheres brancas americanas (descrição que corresponde à maior parte dos praticantes nesse território e no resto do mundo) dançavam um estilo de Dança Oriental a que chamavam “American Tribal Style” ou “Tribal Fusion”. Isto deve ter criado algum embaraço e com o tempo tornou-se insustentável continuar a usar estes nomes. Esta discussão no lado de lá do atlântico onde o estilo foi criado acabou por vir parar à Europa e resto do mundo.
Eu não acho que seja propriamente ofensivo, acho que é inadequado ou impreciso. Vejamos: as danças do mundo que influenciam o estilo ao nível de estilizações, vocabulário e estética (do Flamenco às Danças Clássicas Indianas), não são propriamente estilos “tradicionais” ou “tribais” seja lá como se queira entender a palavra. São estilos clássicos e sistematizados, ensinados de forma formal em escolas e academias. E apesar de o “Tribal Fusion” se inspirar muito na joalharia e estética de diversos grupos do Norte de África que se auto-intitulam de “tribos” sem qualquer ofensa associada (desde as comunidades Amazigh, às Ouled Nail da Argélia e/ou Ghawazee Egípcias), a verdade é que não resultou de um estudo das danças dessas regiões. Ou seja, existem uma série de misturas neste estilo que se foram tornando parte integrante daquilo que ele é que não resultaram de uma reflexão deliberada, mas que foram surgindo por tentativa e erro e reflectem um certo sentido estético e do que é “cool” da geração de bailarinas que o iniciou. Estas primeiras bailarinas nos anos 90 começaram a experimentar juntar coisas num contexto de interculturalidade como existe em São Francisco, zona onde a maior parte do movimento parece ter começado. Obviamente existe aqui uma reflexão importante a fazer em termos do privilégio ocidental que esteve na base da origem deste estilo, e devemos questionar como estamos a misturar coisas que se calhar apenas conhecemos superficialmente, mas parece-me que será preciso ir além da discussão do nome para encontrar formas mais conscientes de fazer esta fusão. Seria bom encontrar um nome que exprimisse esta interculturalidade contemporânea e este espírito experimental do “Tribal Fusion” sem esta carga negativa que lhe ficou associada nos últimos anos. Para já a maior parte das pessoas, eu incluída, estão a optar por usar apenas “Fusion Belly Dance” ou “Dança Oriental de Fusão”. Eu acho que era bom existir um nome que identificasse esta fusão específica, pois existe um vocabulário, uma estética, uma abordagem – um estilo de Fusão próprio e diferente de outras fusões. Mas por enquanto resulta.
Eu acho esta Fusão incrível – e acredito que pode ser um contributo positivo e aproximar pessoas de diversas culturas, desde que seja feita com conhecimento e respeito. E que exista realmente um interesse genuíno e sincero pelas culturas que se cruzam com ela. Se queremos usar movimentos de danças do Norte de África ao Mediterrâneo, do Médio-Oriente à Ásia, e joalharia e figurinos inspirados nessas regiões (e acho bem que o façamos pois senão ainda daríamos menos visibilidade às culturas que estão na origem do que fazemos), então devemos fazer por conhecer a sua história, cultura e política, e estar sensíveis ao facto de que o colonialismo não acabou – estas regiões continuam a ser alvo de operações militares que visam um controlo político e económico de forma manter os interesses Europeus e Norte-Americanos. Precisamos de uma comunidade de dança, na Fusão e na Dança Oriental em geral, mais activa e desperta politicamente, mais culta e mais informada. E eu acho que estas discussões que se estão a ter agora estão a contribuir para isso.

11. Que características achas indispensáveis num professor de Fusão?
Para além da curiosidade pela Cultura de várias regiões, e pelo gosto em estudar e aprofundar conhecimento de várias danças diferentes, acho muito importante ter a capacidade para ajudar os alunos a encontrar o seu caminho e a descobrir formas de adaptar o vocabulário de Fusão à sua personalidade na dança. Há que saber oferecer autonomia e estimular a improvisação, experimentação e adaptação pessoal dos movimentos. Não faz sentido os alunos acharem que só existe uma forma de fazer Fusão quando a fusão só pode acontecer quando quebramos as regras e experimentamos novas combinações.


12. Qual a tua visão sobre o nível de dança das bailarinas nacionais que se dedicam à Fusão?
Eu acho que temos óptimos profissionais de dança de Fusão no nosso país, ao nível técnico e criativo. E quase todos têm contribuido para formar mais pessoas, dando aulas, por isso tenho óptimas expectativas relativamente ao que virá aí nos próximos anos!

13. O que achas que se pode fazer para a Fusão se desenvolver mais em Portugal?
Eu acho que a Fusão neste momento está a sofrer com a crise global em torno do “Tribal Fusion” pois existe uma perda de sentido de comunidade e identidade. A nível nacional acho que a Fusão precisa de mais visibilidade, pois continua a haver uma expectativa de que a Dança Oriental existe apenas num único estilo. É preciso existir uma aposta em espectáculos e eventos que dêem a conhecer a Fusão ao público em geral, em vez de ser um estilo que aparece sobretudo associado a eventos para pessoas que já praticam Dança Oriental. Eu danço muito fora do circuito habitual da Dança Oriental, para públicos que têm um contacto prévio com a Fusão inexistente ou praticamente inexistente, e as pessoas ficam sempre muito surpreendidas pela positiva e são muito receptivas à Dança Oriental de Fusão, por isso eu acho que há interesse, há ainda é pouca visibilidade.

14. Podes dar algumas dicas às bailarinas que querem seguir a área da Fusão de forma profissional?
Apostem muito na vossa formação, estudem várias danças, e estudem bem os estilos mais tradicionais de Dança Oriental (do Raqs Sharqi ao folclore) – bases sólidas vão permitir desconstruir com confiança. Apostem no estudo musical e de noções de musicalidade e explorem vários estilos de música. Procurem professores que vos inspirem a desenvolver um estilo pessoal, e invistam tempo a perceber que identidade artística querem ter. Apostem em criar estilizações pessoais de movimentos, pesquisem conceitos para guiar as vossas criações, escolham músicas alinhadas com os conceitos e emoções que querem trabalhar, pensem na vossa imagem como parte da vossa identidade artística e mantenham uma linha que querem associar ao vosso trabalho. Sejam mais ecléticos ou dedicados a uma linha de trabalho especifica, eu acho que é importante perceberem que artistas querem ser e quais os temas que irão guiar o vosso trabalho e criações. E rodeiem-se de pessoas criativas, inteligentes, inspiradoras, que vos motivem a crescer e a evoluir. Os artistas precisam uns dos outros, de trabalhar em rede, apoiando-se e ao mesmo tempo competindo de forma saudável.

15. Podes nomear uma actuação de Dança Oriental/Fusão que te marcou? Quais as razões que te levaram a sugerir esta performance?
Ver a Serena Ramzy dançar ao vivo foi sempre marcante, e lembro-me de um espectáculo no Algarve em Março de 2011, em que lacrimejei de emoção a vê-la dançar um Baladi. Se tivesse encontrado esse vídeo seria certamente esse que iria partilhar convosco aqui. Vê-la interpretar cada nota do acordeão com a destreza e simplicidade que a caracterizam emocionou-me e mostrou-me que a essência da Dança Oriental está nos pormenores delicados, e não nas acrobacias exageradas que têm vindo a tornar-se cada vez mais comuns. Não conseguindo partilhar o link dessa actuação específica, partilho convosco um clip do espectáculo The Dance Queens of the Nile, Queens of the Dance por Hossam, Serena Ramzy e a Ramzy Dance Company, que pude ver também em 2011 em Inglaterra em East Grinstead. Fiquei muito impressionada com todo o espectáculo pelo nível de profissionalismo e requinte, e foi a primeira vez que eu vi um espectáculo com uma orquestra inteira ao vivo e a cores. O espectáculo tinha uma parte inspirada no antigo Egipto com vocabulário de Fusão, onde eu também actuei como parte do grupo Dilshadance, dirigido pela Judite Dilshad com quem eu estudava na altura, e onde actuou também uma troupe de ATS, as Pedralta, onde também actuou uma troupe de ATS (agora chamado de FCBD em resultado da polémica em torno do termo 'tribal'). Depois tinha uma segunda parte focada nas grandes estrelas na Golden Era, onde se interpretavam grandes clássicos da música e dança egípcias (o clip que partilho é desta parte, onde a Serena Ramzy faz um tributo à Naima Akef). Foi uma pilha de nervos pois eu nunca tinha actuado numa produção daquele nível e senti o peso da responsabilidade de pisar o palco como nunca antes tinha sentido no meu percurso. Fui recompensada com a oportunidade de poder assistir ao vivo a este espectáculo, experiência que ficou comigo até hoje e continua a influenciar o meu trabalho directa e indirectamente. O contacto com a Drumzy School durante anos em que fiz formação com estes professores marcou muito o meu percurso, desde a abordagem à interpretação musical, à forma de trabalhar coreografia, dirigir grupos e preparar espectáculos. Sou muito grata por ter tido estas oportunidades e sei que fiz um excelente investimento ao ter concluído o curso da Drumzy school of Music and Dance e participado em diversos workshops em Lisboa, Faro e Londres destes maravilhosos professores.


16. Quais são os teus próximos projectos e objectivos profissionais?
Em 2020 eu tinha planeado o arranque de novos projectos performativos e uma expansão da minha oferta de aulas presenciais. Tive de alterar tudo e percebi que convém ter planos, mas moderar as expectativas! Neste momento estou a tentar relançar o “Fusion Dance Studio” que foi parado pela pandemia, e a dar continuidade às aulas na YouDance, ao mesmo tempo que estou a tentar organizar melhor a minha oferta formativa online, de forma a conseguir mantê-la em paralelo com as minhas aulas presenciais. Descobri que existe imenso potencial nas aulas online, que é possível oferecer e receber formação de qualidade e quero continuar disponível para as minhas alunas de outros pontos do país e de fora de Portugal.
Ao nível performativo quero muito dar continuidade ao Victor Torpedo & Vera Mahsati Show, pois acho que esta colaboração tem amadurecido muito bem e estamos a atingir um nível de qualidade e sincronicidade cada vez maior. Tenho muita curiosidade de ver onde este projecto pode ir a partir daqui, para além de ser um prazer enorme trabalhar com o Victor que é não só um excelente músico e performer, mas também um grande amigo.
Também estou muito entusiasmada com o desenvolvimento de um novo projecto com o meu amigo de longa data, Baltazar Molina, a que demos o nome de Zénite, e em que exploramos um universo de Fusão com ligação à geografia e cultura do Médio-Oriente, Norte de África e Ásia, em ligação com o passado árabe de Portugal, ligado ao Alandalus. Tudo com inspiração na poesia e numa perspectiva muito própria que temos vindo a descobrir que partilhamos sobre o “Oriente”, que para nós não é algo exótico, estranho ou longíquo, mas sim parte da nossa própria memória cultural e que está em nós de alguma maneira à espera de ser descoberto. Apesar desta situação nos ter abrandado um pouco, já demos um primeiro concerto em Maio e espero que em breve nos possam ver novamente. Fiquem atentos!
Em termos mais gerais, gostava muito de ajudar a produzir mais eventos que levem a nossa dança ao grande público. Esse tem sido um dos meus objectivos desde que me lancei na produção em 2014, pois sinto que a maior parte dos eventos são feitos para a própria comunidade, desde espectáculos de fim de ano lectivo a grandes festivais, o que limita muito o alcance e visibilidade da nossa arte. Uma excepção que fiquei a conhecer melhor o ano passado foi o trabalho da Catarina Branco e do seu estúdio, que em parceira com a Câmara Municipal de Setúbal produz diversos espectáculos e iniciativas com um óptimo alcance ao nível da comunidade em geral. Foi um prazer ser convidada para o espectáculo inserido num desses eventos em Julho do ano passado, e perceber que existem outras profissionais que vêm a produção de eventos nesta perspectiva de divulgação e captação de outros públicos.
Neste momento tão incerto estou a tentar manter-me focada no presente, até porque os meus objectivos profissionais se vão transformando ao longo do tempo. Três coisas guiam o meu percurso: procurar sempre a autenticidade, qualidade e inovação em tudo o que faço, seja ao nível do ensino, seja da performance e criação. E é assim que irei continuar!

Entrevista DOP - Vera Mahsati
Por Rita Pereira
Junho de 2021