COMING UP | The Woman In The Window
Depois de Things Heard & Seen ter estreado sem convencer em larga escala os fãs do género, The Woman In The Window chega para salvar a reputação da Netflix com um thriller bem orquestrado em que as linhas do argumento, elenco e ambiente se interligam para tornar a longa-metragem num dos projetos cinematográficos com melhor construção dentro do acervo da plataforma de streaming, se excluirmos, obviamente as películas que são produzidas com um selo claro de se tornarem competidoras às premiações da indústria de Hollywood. Como entretenimento puro, The Woman In The Window traz uma boa dose de drama, uma Amy Adams que sem grandes surpresas para quem acompanha a carreira da atriz volta a apresentar-se irrepreensível, e um mistério que nos força a interagir com o enredo para sermos nós próprios os detetives de plantão. Está tudo certo quando o texto nos leva ao limite de duvidarmos das nossas certezas e mesmo sem trazer uma moral profunda que eleve o argumento para lá do simples entretenimento, este é um daqueles filmes que ocupa um lugar perfeito num serão de fim de semana em que nos apeteça ver alguma coisa apenas para passarmos tempo. Mas, mesmo com isso em mente, a nova aposta do serviço de streaming conquista um público mainstream sem se tornar numa daquelas histórias em modo pastilha elástica, feita sem pés nem cabeça apenas por ter elenco apelativo que só por si já serviria de marketing para vender o filme. Não, pelo contrário, aqui temos um casting de luxo, em papéis que mesmo não explorando toda a sua potencialidade, não mancham a reputação nem envergonham quando colocados no currículo. Há muito mais para dizer sobre The Woman In The Window, fica connosco em mais uma edição do Coming Up e fica a saber porque é que esta é uma produções que deves colocar já na tua lista de passatempos.
Vamos ao desenho da história, que já é um excelente aperitivo para nos envolver com a história, e que falhou em grande parte na premissa de Things Heard & Seen, o mais recente thriller da Netflix. Desta vez temos uma trama que se centra única e exclusivamente na perspetiva da protagonista, sem se distrair com outros arcos que roubam a atenção e que acabam por colocar, muitas das vezes, os filmes deste género em posições de incoerência pouco confortáveis. Em The Woman In The Window, o retrato apresentado é o de alguém que passou por uma tragédia e que até está bem familiarizada com os desígnios da mente, nada de novo até aqui quando comparado com produções do mesmo estilo, mas é na forma como a história desta mulher nos é entregue que tudo muda. A longa-metragem deixa-nos propositadamente no limbo, utilizando a doçura da atuação de Amy Adams para nos envolver com alguma proximidade com Anna, ao ponto de transformar o nosso afeto em confiança, dando à protagonista alguma credibilidade que será importante para que o objetivo de dar alguma margem dúbia ao enredo não desvirtue completamente a imagem que temos da protagonista, ao ponto de parecer que tudo se torne demasiado óbvio e autoexplicado. Anna está no limite entre a consciência e a loucura levada a cabo pelo excesso de medicação, chegando ao ponto de achar que está a duvidar dela própria, e é nesse ponto que nos conquista, porque nós, público, acabamos por servir de almofada de confiança ao ponto de fazer com que todos os pontos se unam numa narrativa que é, toda ela, coerente, sem cair em clichês ou lugares comuns. No fundo, a protagonista é o prato forte do filme, e a solução perfeita para que a construção de The Woman In The Window não falhe.
Chegando quase a resvalar para o terror, outro dos grandes acertos desta película é a capacidade de saber exatamente quais são as cordas que pretende puxar. Separando o thriller e terror de uma forma pouco habitual nas grandes produções de Hollywood que acabam por casar muito bem com o ambiente que acompanha grandes títulos de culto como Shutter Island e Secret Window. Inspirado precisamente nestes sucessos, há o ponto positivo de não cairmos no caminho de todos os eventos, por mais lunáticos que sejam, não serem nem alucinações nem fruto de momentos de fraca lucidez da protagonista, apesar dessa ideia nos passar pela cabeça várias vezes durante o tempo do filme. A aposta em tornar credível toda aquela teia de eventos caóticos prende-nos até ao último minuto enquanto sustemos a respiração à espera que a nossa confiança na credibilidade de Anna não seja, em momento algum, quebrada. Há uma linha de identidade muito bem definida que se nota logo pelo ambiente criado. Com tudo a acontecer no mesmo cenário a ideia claustrofóbica que acompanha a protagonista é fácil de assimilar e de nos colocar em perspetiva ao ponto de entender as dúvidas que ela tem sobre a sua própria sanidade mental e a facilidade com que ela se agarra a qualquer desconhecido que entre na sua vida. Todo o ser humano precisa de afetos e isso ajuda a compreender a forma rebuscada, estranha e rápida com que esta mulher cria ligações com os outros. O que não deixa, numa análise final, de ser uma mensagem de que a confiança cega não se deve basear apenas nas primeiras impressões. O ponto de deixar todos os diálogos que realmente revelam algo com Amy Adams é a tática perfeita para que nada pareça forçado, porque no fundo, acompanhamos toda a evolução da personagem a partir do seu próprio ponto de vista, com uma aprendizagem conjunta sobre a história que nos leva para dentro da narrativa em vez de nos fazer duvidar das nossas capacidades de aferir onde está a verdade e a mentira.
Nunca é demais ressaltar o trabalho de Amy Adams que bebeu um pouco da essência que já tinha trazido em Nocturnal Animals e que volta aqui a provar que é bem mais multifacetada do que aparenta, levando o projeto às costas, no melhor sentido da expressão. Ela domina as cenas com uma maestria excelente sempre com um ar amigável e afável que são fundamentais para que a personagem funcione. No fundo, é um claro exemplo de como um possível erro de casting poderia ter deitado para o lixo um argumento que tem força para subsistir ao desgaste do género. O monólogo em que ela se apercebe que todos estão convictos que tudo o que se está a passar foi uma invenção da sua cabeça é um pouco de viragem em The Woman In The Window e dá o boost necessário para continuar a prender a nossa atenção, mesmo num projeto que tem uma paleta de cores tão escura e que por isso poderia ser mais maçador. Pelo contrário, ao invés de monotonia, temos o ritmo perfeito para que todo o talento de Amy Adams transborde para fora do ecrã e faça parecer que uma hora e quarenta minutos seja apenas o tempo de vermos um episódio de uma série avulso. No grande final, quando o tom do filme já está mais próximo daqueles eventos de lutas blockbuster a atriz não perde a compostura e a densidade que construiu para a sua Anne ao longo de todo o projeto, mantendo as mesmas inseguranças e a mesma ideia de que tudo poderá ser fruto da sua imaginação. Há uma duvida constante que está espelhada muito para lá das palavras do texto, mas sim num trabalho de construção invejável da artista que, convenhamos, depois de anos a ser uma das queridinhas da Academia bem que merecida levar uma estatueta importante para casa entretanto.
O ponto mais fraco do filme não chega a ser um aspeto negativo. Falamos do elenco de luxo que The Woman In The Window apresenta. Por mais que ter nomes como Gary Oldman ou Julianne Moore no ecrã seja sempre ótimo, mesmo que só apareçam para dizerem três falas, há sempre a sensação de que mereciam um maior tempo de ecrã. E aqui é um claro exemplo sobre como o casting poderia ter sido ainda mais explorado, sobretudo tendo em conta o excelente trabalho que foi feito na construção da protagonista. Imaginemos só as nuances que poderiam ter dado a Gary Oldman, que chega ao projeto no rescaldo do sucesso de Mank, que o fariam só abrilhantar ainda mais todo o projeto. E isto tendo em conta, que o papel dele é um daqueles que tem muito pano para mangas. Mas se no caso de Gary ainda tivemos tempo para, em parte, vermos o seu talento em ação, o que dizer de Julianne Moore? Ou até mesmo de Jennifer Jason Leigh? Julianne deu uma contracena que mesmo curta serviu para nos arrebatar, como sempre, agora Jennifer fez apenas figuração e serviu para contestar a identidade real de Jane, ficando, única e exclusivamente, com falas em que referia repetidamente que ela era de facto quem dizia ser. Enfim, esta última foi um verdadeiro desperdício, sobretudo tendo em conta que se tem confirmado como um dos rostos mais versáteis da indústria nos últimos anos. E se temos um casting com nomes de se tirar o chapéu para papéis secundários, temos, por outro lado, uma escolha terrível para o papel de Ethan, no pouco empático Fred Hechinger que não nos convence da loucura do seu personagem nem por um segundo e torna a contracena com Amy Adams numa aula de interpretação à vista de todos. É ainda mais gritante quando este ator tinha em mãos um papel que é, repetidamente, pedido por vários artistas que parecem ter um desejo profundo de dar vida a um louco nos ecrãs.
Nas adaptações de livros recentes feitas pela Netflix, a margem de erro tem diminuído, quando comparado com alguns filmes classe B que produziram no passado, o que volta a provar os benefícios que a concorrência entre gigantes traz para o público. Contudo, The Woman In The Window funciona ainda melhor por ter um projeto que é muito mais viciante quando colocado nos ecrãs do digital do que propriamente nas salas de cinema em que poderia cair, facilmente, no desconhecimento do público por se encaixar num género que apesar de querido por todos foi saturado pelos clichês constantes que foram embutindo às longas-metragens deste estilo. Num argumento que é muito old school mas que funciona, The Woman In The Window é uma aposta ganha, e que entra diretamente para a lista de sugestões que podemos dar a quem nos pergunta o que podemos aconselhar ver na Netflix. A intriga tem alguns conflitos que se resolvem depressa demais, mas nada que desvirtue a história, além de trazer novamente para o centro da ação o desenvolvimento emocional de um personagem principal tendo em conta um estado emocional mais frágil de um forma bastante convincente. No fundo, e isto com algumas ressalvas, ainda bem que tivemos um exemplo menos bom antes com Things Heard & Seen para nos baixar as expectativas e conseguirmos agora com esta nova aposta sermos conquistados ao ponto de apreciarmos cada detalhe da elegância com que The Woman In The Window foi colocado no ecrã. Soma-se mais um projeto firme e digno à lista de originais Netflix, provando cada vez mais que no mercado do cinema a Netflix continua a ser um nome a ter em conta na hora de avaliarmos a qualidade pela distribuidora. Que venha o próximo título mais sério, porque, por enquanto, continua a merecer a nossa confiança.
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