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COMING UP | Prisão Domiciliária

Sem surpresas a nova aposta da OPTO SIC volta a ter na essência a qualidade narrativa, uma boa realização e um elenco de grandes nomes que confirmam o talento. Prisão Domiciliária estreia feliz por estabelecer uma correlação com a realidade numa época em que corrupção e política voltam a estar ligadas nos noticiários e tribunais. Por mais que seja ficção a história que temos na série, é impossível não estabelecermos um paralelo com os casos reais que conhecemos e nesse ponto, apesar de Prisão Domiciliária surpreender no tom, que blindado com os discursos dramáticos é envolto num ambiente quase cómico, não deixa de ser um enredo que temos muita curiosidade em ver, mais que não seja para nos servir como um exemplo ou um retrato do que é a suposta vida de uma figura do estado que se deixa corromper pelo dinheiro e poder. O sucesso deste enredo está na premissa atual numa primeira instância mas com a promessa de que ao longo dos episódios essa força própria seja alicerçada em personagens densos no seio de uma família que no primeiro episódio já desabrochou e deixou espaço para verdadeiros espetáculos de interpretação. É uma trama sobre consequências e talvez seja essa ideia de acompanhar o depois da condenação o truque para a tornar diferente. Nesta edição do Coming Up voltamos às produções nacionais para discutirmos os grandes destaques do novo conteúdo premium do serviço de streaming da SIC.

O primeiro grande acerto de Prisão Domiciliária é a construção dos alicerces, a base das personagens direcionando o público para uma história que vai escrever-se ao sabor das personalidades e objetivos das figuras que montam esta teia da criminalidade deixando o lado pesado da burocracia a servir apenas de elemento de conexão. Esses alicerces notam-se desde a primeira cena com o jantar a definir desde cedo a hierarquia de poderes do desenvolvimento e a destacar as características megalómanas que Álvaro. A imponência e a subserviência que é dada àquele homem ajudam a criar a base e o contexto que tornam o crime em algo banal, tudo porque à luz da sua personalidade parece existir um clima de medo nos outros ao ponto que seja possível lhe apontarem o dedo. Junta-se a isso a importância da profissão que lhe dão uma dimensão de poder que aos seus olhos o colocam imune a qualquer tipo de julgamento, porque perante a esmagadora maioria da população é o homem confiável, o homem de negócio mas com um lado de fanfarrão que acaba por o aproximar de várias classes. Aliás, um dos chavões mais acertados na construção e definição deste personagem é esse espectro que caminha em várias águas, com o luxo e sapiência que toca a classe alta e a boa disposição e atitude mais popular que o tornam um ídolo apetecível para classe ditas mais baixas. Isso ajuda a criar na nossa mente uma imagem fiel e próxima da maioria dos políticos com vida pública que conhecemos e que vemos todos os dias nos ecrãs da televisão. 



Mas Prisão Domiciliária não vive apenas de Álvaro, e ainda bem. Temos Raquel que apesar dos discursos mais dramáticos tem de se dar o mérito aos autores por não a terem construído num papel de vitimização e até por lhe entregarem uma dimensão de subserviente que casa muito bem com as linhas narrativas que foram delineadas pelo texto até então. Os diálogos em publico são muito diferentes do que acontece no privado da relação desvendando uma postura pública desta mulher como alguém que é independente com ideais e objetivos e uma voz ativa, enquanto na esfera da relação parece viver na sombra do sucesso e da personalidade de Álvaro que a reprime e a obriga a moldar a sua postura em função dos seus desejos pessoais. Em Raquel temos, além de tudo isso, alguém que também é uma figura de confiança da população e apresenta um lado menos retratado neste tipo de obras, quer na nossa ficção quer no estrangeiro, em que existe uma preocupação em mostrar que as consequências das acusações destroem a vida não só do acusado mas também de quer orbita à sua volta. Os diálogos em que repetidamente refere que os telefonemas se desligaram são um ponto interessante para entendermos, também, como na vida política as aparências são o que mais ordena, em movimentos controlados em que o poder dita as regras e os afetos das relações pessoais são integrados em jogos de interesse. Nada que não saibamos já de acordo com aquilo que construímos na nossa consciência coletiva mas que na história de Prisão Domiciliária parecem encontrar um tratamento diferente representando a queda desse jogo de interesses como se fosse um baralho de cartas com um especial foco nas consequências que isso traz para quem não é tido nem achado nos atos ilícitos. 


Apesar de termos dois protagonistas tão marcantes, temos três personagens que prometem rivalizar em termos de densidade com capacidade de roubarem holofotes à medida em que os episódios se vão desenrolando. Vamos por partes. Temos Bernardo, o maior exemplo dessa demagogia do poder, que na essência parece encaixar na típica definição de um Boy (que remete muito para o retrato que vimos na trama Os Boys da RTP), que tenta por entre os pingos da chuva conquistar pequenos poderes subindo na hierarquia política por lobbys e proximidades apesar do seu aparente aspeto ingénuo. Contudo, o personagem não é limitado e terá, de certo, uma evolução que nos mostrará um lado muito mais desarrumado do que aparenta com uma índole muito mais aceitável e possivelmente muito pior do que o que podemos esperar, até porque não há coincidências em enredos deste género, e podemos estar perante aquele que é o grande motor do acontecimento que dá origem à cadeia de eventos. Um personagem que se apresenta como alguém dependente de lobbys conseguir subir depois da queda de um outro não será um mero acaso, mas sim mais um claro exemplo de como os fins justificam os meios. No outro lado temos David, que também resvala na obediência mas mantém-se firme e reto na sua atividade profissional. Na definição de poderes que é instituída na trama, David é um exemplo de fidelidade, mesmo que a causa não seja a mais correta, sendo ele um contraponto a um grupo de trabalho em que todos se mantêm apenas por influencias esperadas. David teria tudo para ter virado costas, e apesar de nas suas origem em algum ponto Álvaro ter dado um impulso à sua carreira, certo é que se manteve no mesmo lado da força ao contrário de Bernardo que ao sabor do vento e do proveito pessoal se aproveitou do escândalo. Numa outra dimensão, já fora do clube privado de figuras de poder temos Maria de Lurdes que numa primeira abordagem até nos vende algumas cenas que quase caiem na comédia, mas que servem para mostrar que neste Xadrez a rainha da família continua a ser uma peça muito mais vantajosa que o rei. 



Marco Delgado tem tudo para ter aqui o grande papel da sua carreira, e do que já podemos antever neste primeiro capitulo está no ponto certo para tornar o seu Álvaro memorável. Até porque para uma personagem que tem tantos exemplos que lhe podiam dar um paralelo ele apresenta uma forma muito própria de o interpretar sem transparecer como uma mímica da personalidade e trejeitos de figuras políticas que já conhecemos. Em comum com outras personalidades que temos envolvidas em processos do género do que dá origem ao enredo de Prisão Domiciliáriatemos apenas essa ideia egocêntrica e megalómana de uma cabala contra si e a ideia de o poder e influência se manterá intocável dando a entender ao público que é um mártir de um sistema de interesses. Claro que o texto ajuda porque coloca o jogo de interesses da cena política como ascensor e destruidor de carreiras, é o herói e vilão em traços mais românticos, mas nada retira o magnetismo que Marco atribuiu ao papel e que se destaca ainda mais nas contracenas com um elenco que logo de inicio agarra com força os traços dos seus personagens. Temos Filipe Vargas a beber novamente o mesmo elixir que fez nascer o inesquecível Mariano de Sol de Inverno, numa timidez que se reflete não só no texto mas também na postura. A concepção do personagem é transversal no ator, dando logo de inicio a ideia de alguém que é frágil, o que poderá funcionar ainda melhor quando o caminho da história lhe der a controvérsia que todos esperamos que tenha. A Afonso Pimentel e Sandra Faleiro basta sublinhar o talento e a capacidade artística para nos darem personagens tão diferentes sempre que surgem em alguma produção, com  destaque para a contracena de Sandra com Paula Magalhães, em que a ligação entre mãe e filha se torna credível no imediato. Paula Magalhães será muito provavelmente a grande surpresa da série daqui para a frente e poderá ser este o pontapé de saída para uma carreira muito sólida. Enquanto nas confirmações de atrasos de interpretação Valerie Braddell vai ter o protagonismo que merece voltando a dar mais do seu talento e provando ao espectadores que não a conhecem o quão versátil consegue ser nesta suposta vilã que está a milhas da sua Hermínia em Esperança, com o ponto em comum da qualidade do talento e da produção das duas histórias da OPTO.


Prisão Domiciliária tem qualidade de se tornar um produto de culto ao lado das restantes obras que o serviço já lançou. Mais uma vez vem potenciar o talento dos grandes nomes da ficção nacional num produto que sai fora dos limites habituais dos projetos de ficção que temos tido, com papéis desafiantes e um texto que segue novas alternativas bem próximas de produtos estrangeiros. Apesar dessa proximidade com a qualidade do que se vê lá fora, a linguagem é muito própria, temos um desconstruir da complexidade burocrática que as tramas que abordam estes temas imprimem nos seus diálogos e numa perspetiva que é mais abrangente a novos públicos do que, por exemplo, O Mecanismo da Netflix, que nos seus meandros privilegia uma construção mais técnica dos seus diálogos. Prisão Domiciliária é muito humana, mostrando ao público os seus personagens despidos de filtros de conduta e com identidades bem definidas numa lógica de proximidade que não tenta copiar ninguém mas sim apresentar-nos uma série que é sobre corrupção baseada em figuras com muita densidade mas que são apenas e só ficção, o que dá à história muito mais margem de manobra e retira a habitual previsibilidade. Já vimos dezenas de relatos em séries e filmes sobre casos de corrupção mas poucos são os que ousam em fazê-lo com figuras criadas para o efeito. É um claro caso em que o baseado em factos verídicos seria muito mais limitativo e tornaria tudo muito mais do mesmo, o diferencial em Prisão Domiciliária é esse: Contar uma história credível com figuras que não são reais mas sem fazer com que esse lado irreal torne os personagens em bonecos. Neste primeiro episódio a série parte no lucro, que se une numa realização brilhante, algo que já não surpreende vindo de Patrícia Sequeira. 


Fotos: António Mantas Moura / Divulgação SIC / Santa Rita Filmes