COMING UP | Cherry
Cherry é a prova de como o casting pode minar um filme, desfazer a empatia e destruir todo o trabalho para elaborar o ambiente em que uma longa-metragem. O mais recente projeto da Apple+ é um chorrilho de problemas salvo pela realização e pela montagem, numa atuação que destaca o trabalho de Tom Holland na mesma medida em que o ator é o grande ponto negativo. Um aparente paradoxo que só eleva a função do Diretor de Casting, e prova que a fama não pode vencer o duelo de um bom argumento. Aqui o argumento até pode não ser brilhante mas a falta de possibilidades para nos conectarmos com o personagem principal não nos deixa margem para que lhe entreguemos o benefício da dúvida. Cherry é mais uma daquelas películas que almeja estar na vanguarda mas se auto anula na tentativa de criar marketing através da escolha de um ator, sacrificando o texto, o aspeto e a empatia. São duas horas e meia de bons planos mas que se tornam penosas e longas numa película que pedia menos tempo, maior peso nos temas abordados e que suplica por uma melhor triagem sobre o que deve ou não ser incluído. No fundo a velha máxima de que menos é mais devia, mais uma vez, ter sido ouvida. Mas calma, vamos percorrer o caminho e explicar onde estão as falhas e o que é bom afinal na nova aposta cinematográfica dos irmãos Joe e Anthony Russo depois do excelente trabalho que apresentaram nos últimos dois filmes dos Avengers. Fica connosco em mais uma edição do Coming Up.
No arranque, Cherry começa da melhor forma, com uma apresentação biográfica vestida com um design altamente apelativo, um protagonista carismático que quebra parte da quarta parede, e uma trama que é convincente e que nos faz antever reviravoltas surpreendentes. Contudo, ao final de meia hora damos de caras com aquele que é um dos maiores problemas da longa-metragem e que se arrasta até ao final do filme: A gestão de tempo. Num paradoxo peculiar, Cherry é uma produção arrastada, em que o peso de cada minuto é sentido pela falta de surpresa e pelos diálogos um tanto ou quanto preguiçosos, ao mesmo tempo que todos os temas que vão saltando para o lugar central da história parecem relatos curtos, despidos de densidade ou profundidade sem uma preocupação em que sejam impactantes para quem vê. Compramos a ideia do adolescente que no auge da sua rebeldia cai no mundo das drogas, do adolescente que não consegue manter empregos e para quem o amor ainda é uma bandeira para vender aos amigos, até este ponto ainda estamos na fase de descoberta e por isso até aceitamos a passagem de tempo mais acelerada, até porque não é algo inédito. Mas quando entramos no capitulo em que Cherry se alista no exercito a história já é outra e é aqui que o filme começa a perder a nossa atenção. As sequências iniciais são interessantes mas não deixa de ser uma passagem muito oca para aquele que é um dos pontos de viragem na vida do personagem. Faltaram mais cenas e sobretudo faltou identidade, faltou à narrativa entender naquele ponto se queria contar esta parte da história de uma forma mais emotiva e entregando-lhe a devida carga dramática ou se queriam manter a perspetiva de engraçadinho do início do filme. O meio termo e a falta de definição tornou tudo muito oco e sem que se sinta rigorosamente nada, numa manchada nas possibilidades de criarmos empatia com o personagem. No fundo sente-se que há uma urgência de mostrar tudo e mais alguma coisa, num espetáculo de privações de uma vida trágica mas que se perde no meio de uma sucessão de eventos que em vez de construírem o personagem só esvaziam o argumento e nos fazem perder o foco no conteúdo.
Contudo, apesar do grande desastre é precisamente no capítulo em que a vida de Cherry passa pelo exército que salta à vista o maior aspeto positivo deste projeto, a edição. Do design à realização pouco falha e mesmo com o suposto ambiente pesado, as transições e os planos atraem públicos que não são usuais neste género de produções. Um forte atrativo que casa muito bem com a realização dos irmãos Russo, que souberam muito bem beber o lado positivo dos blockbusters e transportá-lo para uma película onde o drama impera sem perder a visão do que agrada ao público mais mainstream. Esta poderia ter sido uma ótima janela para diversificar os estereótipos que encaixilham os filmes de heróis e os filmes de drama em posições quase divergentes. Contudo, apesar do excelente trabalho técnico, o objetivo não é cumprido porque no resultado temos um argumento que não prende, não convence e que é até incoerente na mensagem que tenta passar. As transições de capítulos fazem mais pelo aspeto visual do que a caracterização de Tom Holland, e ajudam a dar um embalo no reconhecimento do estado mental do personagem, mas quando isso não se traduz no que vemos no ecrã, pela tal falta de carga que é entregue nas cenas, só serve para aumentar a nossa frustração e para nos dar vontade de desistir. As linhas do filme são puxadas em direções diferentes, com o argumento a saltitar em picos de tensão (sem os assumir corretamente) e momentos em que anda em círculos. Resume-se numa longa montagem que aparenta ter muitas cenas que realmente são importantes a serem deitadas fora, para depois darem lugar a cenas do par romântico num loop desnecessário e que não convence porque não lhe é dada a devida base. Isto tudo além daquele que é o maior problema dentro desta confusão: Tom Holland.
Um bom casting nunca pode ser baseado em popularidade, sob pena de que o marketing se torne num lugar comum e que mine a indústria. Mas apesar disso, em Cherry, o que temos é um ator que por mais carisma e melhor atuação que tenha não veste o personagem da melhor forma. A longa-metragem apresenta uma sucessão de eventos na história daquele rapaz que é massiva na medida em que há muito poucos eventos traumáticos que ele não tenha experimentado. Contudo, quando olhamos para Tom Holland vemos a inocência da juventude espelhada em cada frame que tornam completamente impossível acreditar que o personagem já tem a idade que tem e que ele já passou por tudo aquilo. Mas a culpa é do ator? Não, sem surpresas Tom Holland tem uma interpretação digna de nota, cumprindo no critério de atuação, e fazendo um trabalho que em muitos pontos se cruza com o trabalho que aplaudimos em The Devil All The Time. O problema não é dele, porque de facto ele esfola-se para se tornar convincente. Simplesmente este não era o momento de na carreira dele abraçar o papel de um ex-combatente, que no regresso passa por todas as questões da dependência que ele passa e por todo o stress pós-traumático, porque na aparência o que temos é um jovem de tenra idade que não tinha sequer tempo para ter vivido metade do que ali se conta. Tudo bem que estamos a falar de um filme, e que há alguma liberdade poética, mas isso não justifica tudo, e se o projeto se introduz como algo que pretende ser um desenho fiável da realidade, então a falta de termos uma figura no ecrã que já nos remeta para a tal carga emocional que nos querem apresentar é o ponto final nas possibilidades de termos algum tipo de empatia com o personagem.
Como dissemos, o trabalho de Tom Holland é digno de nota e se ignorarmos o background que lhe construíram, e tivessem mantido apenas a ideia de um jovem que cai no mundo das drogas e inicia uma vida de assaltos para conseguir continuar a consumir, teríamos aqui um papel que poderia levar a carreira do ator para voos mais altos. Se ele entregasse esta interpretação numa peça de teatro, com uma caracterização que fizesse justiça à passagem de tempo e ao envelhecimento natural, Tom Holland estaria agora no topo das listas de críticos. Mas não é isso que acontece e na impossibilidade de podermos dar de bandeja essa desculpa, porque não podemos contornar os eventos que o filme nos dá, aquela que é uma das melhores interpretações do ator até ao momento faz com que ele se torne no maior defeito do filme que protagoniza. Imaginemos que em vez de Holland teríamos neste papel, pelo menos numa segunda fase da história, em que a troca de atores deveria realmente ter acontecido para salvaguardar o ator de criticas, alguém como Casey Affleck, por exemplo, talvez essa divisão fosse a chave para salvar o filme. Porque numa base de comparação, estaríamos a falar de um personagem que teria uma idade muito mais avançada do que a do personagem de Andrew Garfield no final dos eventos de Hacksaw Ridge, e torna-se difícil de acreditar que é isso que temos no ecrã pela falta de uma construção visual para o efeito. Numa crítica um pouco mais dura mas realista, o casting de Tom Holland para o papel está na mesma linha de credibilidade que a CW nos tenta fazer acreditar quando nos diz que Lili Reinhart de Riverdale tem apenas 16 anos. A questão da idade é um problema gigante num industria que é rica de profissionais mas que sobrevive a vender a imagem e que sacrifica as possibilidades de um texto convencer em prol do marketing dos likes. Aqui além disso ser notório é uma falha gigantesca que destrói a experiência.
No final nem o encerramento da narrativa convence, vendendo a ideia de redenção do personagem e um final feliz para a sua epopeia sem que isso seja tão meritório como aquela sequência faz parecer. Ou seja, mesmo neste aspeto em que poderiam ter salvo alguma da pouca credibilidade que restava à história, falham redondamente com um romance embutido, pouco realista, e que é uma típica história de filme que em nada acrescenta à moral coletiva da sociedade. Oco é talvez a melhor palavra para definir Cherry, num percurso de mais de duas horas que viaja por temas em cima de temas sem nos levar a lado algum, com uma mensagem sobre dependências que não tem qualquer significado pela falta de contextos, uma falácia gigante sobre a facilidade de assaltar bancos que é extremamente perigoso num mundo em que já por si é composto por muitos loucos, e um protagonista que não tem uma definição possível. É um daqueles exemplos em que para quem não gosta de histórias que acabem com a resposta de que tudo foi um sonho, até ficaria mais satisfeito com essa justificação do que com a solução romanceada que deram para terminar a história. Valeu o talento da realização e do lado técnico para não darmos a experiência inteiramente como perdida, valeu a performance de Tom Holland que dentro do seu loop de paradoxos deu o melhor que podia e mostrou todo o potencial futuro do ator, mas valeu por detalhes enquanto no seu todo foi uma falha constante que se torna memorável pelos piores motivos e que mancha um catálogo recheado de histórias com uma qualidade gigantesca que a Appple+ tem apresentado. Vamos apagar este da memória e esperar que Tom Holland continue a ser uma surpresa constante em papéis que sejam, realmente, à sua medida.
Comente esta notícia