Coming Up | The One
Que o amor é uma fonte de poder inimaginável já não é uma novidade e temos milhares de canções, livros, filmes, séries e até a própria história mundial para nós servirem de exemplo disso. Contudo, The One eleva a questão numa trama que pode muito bem servir como um estudo sociológico fictício sobre o quanto a busca pelo par perfeito pode ser muito menos encantada e charmosa que aquilo que nos fizeram acreditar. Na verdade, o amor é o fio condutor para levantarmos questões como a hegemonia da informação, a privacidade e até mesmo como a nossa vida pode ser microprogramada pelas grandes empresas. A realidade é distopica, mas com a credibilidade construída em cima de bases muito realistas. O que resulta num drama de ficção científica que apresenta uma espécie de experiência social sobre como seria a sociedade se descobrir o nosso par perfeito estivesse à distância de uma simples entrega de um fio de cabelo. A nova aposta da Netflix surge como uma espécie de expansão de Black Mirror e vem provar que nem todos os sonhos são bons, numa narrativa bem encadeada, com personagens a mais mas que resulta muito bem se o objetivo for fazer-nos pensar. É uma daquelas tramas que alimenta conversas de grupo, que suscita reações é que para o bem e para o mal não conseguimos ficar indiferentes. Junta-se a tudo isso o crime como velho acelerador dos acontecimentos, é mesmo que não fosse extremamente necessário ter esse elemento dentro de um universo tão rico é essencial para mostrar que a sociedade não pode embebedar-se de emoções. The One é mais um acerto da gigante do streaming, pelo menos no tema, com apelo a vários tipos de público, e nesta edição do Coming Up vamos contar quais são os motivos da discussão e os pontos fortes da história que tem toques portugueses pelo meio.
Tal como um dos monólogos iniciais indica, a história de The One parte do vício do ser humano em sacudir responsabilidades, em atirar culpas para terceiros sobre as suas escolhas e salvaguardar os seus falhanços com a típica desculpa infantil do “foi ele”. E é neste ponto que a narrativa da série assume o lado sociológico, numa corrente de eventos que refere o poder que a utopia do amor perfeito traz à sociedade, mas sobretudo o quão influenciáveis somos nas nossas escolhas. Logo de início apresentam-nos uma série de matrimónios que foram destruídos por conta dos matchs levados a cabo pela empresa, como se ter aquela suposta base científica fosse a razão para abandonar tudo o que construíram, muitas das vezes sem pensar nas consequências dos atos. Tudo isto enquanto se levanta a questão da privacidade e do quão perigoso é deixarmos o nosso destino nas mãos de uma empresa. No fundo, e apesar da base fictícia podemos criar um paralelismo entre o que acontece neste texto e a nossa realidade. No fundo, o ser humano é em larga escala fruto da obediência daquilo que o marketing nos impõe, por isso The One puxou apenas alguns cordões para provar que deixamos nas mãos de grandes empresas a definição do que é o nosso objetivo de vida. Neste ponto, a série não podia ser um acerto maior, porque se em qualquer conversa de café o Tinder se torna facilmente num assunto, então imaginemos como seria o mundo se tivéssemos alguém a escolher por nós aquilo que seria o par perfeito, porque sejamos sinceros, crescemos com contos de fadas e por mais que não o digamos em voz alta à sua maneira todos sonham com o príncipe ou princesa encantada. A abordagem psicológica é um dos grandes pontos positivos de The One, mostrando que todo o universo colapsou naquilo que o marketing vendeu como a solução dos problemas.
Nos highlights destaca-se a densidade humana da protagonista. Apesar de algumas atitudes serem ficção pura, extremadas pelo universo criado pela narrativa, Rebecca não despe o lado realista para se deixar cair no estereótipo de vilã gratuita. Ela realmente acredita na credibilidade do instrumento que criou, com a mesma verdade com que qualquer pessoa acredita em qualquer projeto. Nesse sentido, Rebecca torna-se num destaque positivo, até porque numa série onde as emoções são o principal fio condutor, a personagem consegue ter as suas intenções claras como a água para quem vê. Não há nenhum ponto da trama em que percamos o fio condutor da protagonista, nem que nos seja completamente impossível teorizar sobre o que ela esta a pensar nesse momento. Por mais que isso retire algum fator surpresa, serve de link perfeito para aproximar o público das suas intenções. Mesmo quando cai na teia da sequência de violência, os diálogos preocupam-se em fazer-nos entender que há ali um sentido de predador que é coerente, a bem ou mal, com as características que foram construídas ao longo dos episódios. Tem muita coisa questionável? Sim, mas podia ter resvalado para o lugar comum de começar um genocídio dos vários arcos, e não foi isso que aconteceu. Hannah Ware deu-lhe aquele tom misterioso que serve de contraste perfeito para a personalidade que depois se apresenta aos olhos dos espectadores.
O que nos leva ao contraponto com Matheus, e ao tópico sensível: A Netflix não está preparada para o talento de Albano Jerónimo. Temos de fazer uma declaração de intenções e dizer que Albano Jerónimo é provavelmente um dos maiores atores portugueses, contudo nesta obra não foi utilizado nem um décimo do talento do ator. A culpa é toda do texto que não se preocupa em dar-lhe espaço para viver e mostrar mais para além daquilo. Ele é um meio que o argumento usa para dar destaque à história de Rebecca, mas há alguns pontos em que se torna constrangedor ver que Matheus tinha potencial para muito mais. É certo que ele serve de instrumento para dar o background da humanidade de Rebecca, mas convenhamos que ninguém é única e exclusivamente o “par de”, e isso é o que aparenta no ecrã este Matheus. É-nos entregue toda a história dramática do personagem mas parecem não existir consequências reais na hora em que devia acontecer algo mais. Nem no mormente do luto, que podia ter sido a grande explosão do personagem, lhe dão espaço para isso. Ou na conversa final com Rebecca em que no momento em que estamos todos à espera de uma reação acontece uma tragédia que o impede, mais uma vez, de agir. O texto não soube utilizar o talento e experiência de Albano Jerónimo, mas esperemos que o mundo abra portas para que possa realmente mostrar tudo o que conhecemos dele. Em contrapartida, Miguel Amorim tem um arco surpreendente, mesmo que tivesse potencial para um desenvolvimento maior, Fábio é dono de um dos melhores ganchos de final de episódio e realmente dá uso no seu desenvolvimento aos eventos familiares que Matheus apresentou na conversa com Rebecca.
Nos vários arcos há avanços, recuos e algum espaço para andarmos aos círculos, mesmo que não deixem de se manter relevantes e interessantes para a história. A grande vantagem criada foi a independência dos vários núcleos, o que é ótimo para o ritmo da série. Apesar de todos eles terem o seu tom dramático, Hannah, Mark e Megan foram o caminho perfeito para dar um alívio nos momentos em que o arco de Rebecca atingia picos de densidade que poderiam tornar o episódio mais maçador. Temos a vantagem de não parecer que tudo se desenrola numa rua, apesar de em algum ponto os núcleos se cruzarem, existem enquanto figuras individuais, o que aumenta a credibilidade da história. Convenhamos que às vezes há um exagero nos textos das séries, em que parece que não existe privacidade em nenhum ponto. Aqui debate-se a questão da privacidade e até a legalidade do controlo de dados, mas apesar disso não existe a habitual fusão da vida de todos os personagens numa única linha contínua de causas e efeitos. Mesmo assim, o argumento peca por abrir vários caminhos sem depois ter tempo útil de ecrã para os desenvolver. Deram uma história de fundo a Connor, para depois ele continuar a ser apenas um pau mandado, deram ênfase à vida amorosa de James, mas isso só volta a ser debatido no último capitulo. Ou seja, há pontas soltas que vão sendo deixadas sem propósito e porquê? Porque o universo criado como alicerce da série já trás consigo uma série de questões e termos que têm obrigatoriamente de ser desenvolvidos, não deixando espaço para mais uma série de eventos que não sendo totalmente triviais poderiam perfeitamente servir de fio condutor para uma segunda temporada. Até porque terminamos a primeira leva de episódios com a sensação de que existiu uma corrida para amarrar tudo o que conseguissem não deixando grande margem para nos surpreender caso exista uma renovação para novos capítulos.
Já dissemos que este é um universo muito rico, mas em tudo o que é grandioso, também os defeitos ficam mais visíveis. E numa empresa com aquela dimensão há um facilitismo enorme em submeter dados que correspondem a outras pessoas sem o seu consentimento. Não há nada que impeça qualquer pessoa de o fazer, o que desvirtua um pouco o sistema, mas também não parece existir nenhum questionamento social sobre isso. Fala-se na legalidade, mas não nesse ponto, que coloca em cheque toda a proposta da marca, porque o match que for entregue pode não estar interessado em criar uma ligação, logo foi uma proposta em vão. Mas não é a única falha que se encontra. A forma como se depositam esperanças no instrumento é avassaladora, e ignoram-se factos como: Se a pessoa que é o nosso match não acreditar neste sistema então estamos condenados à fatalidade de nunca termos um relacionamento, quando no livre arbítrio dos eventos sabemos que existem fatores como a diferença de idades, por exemplo, que moldei-me todos os dias as vidas e visões. No fundo, é fácil desconstruir a hegemonia apresentada e tornar aquilo que é supostamente uma verdade cientifica numa mera jogada de marketing facilmente. À parte de tudo isto, The One chega com discussões interessantes, que são importantes nos dias que correm e uma narrativa facilmente maratonável e que dificilmente vai deixar alguém indiferente. Na técnica é bem executado, as interpretações são dignas de nota, o ritmo é bastante bom, mas perde nos diálogos por não conseguir entregar o potencial de todos os personagens de igual forma, mesmo quando se nota a urgência para que o façam. A nota não deixa de ser positiva e que se abra a discussão sobre se queremos ser obedientes ou se o livre arbítrio ainda é, mesmo, a melhor forma. Ou será que o livre arbítrio tem algo de genético? Há discussões eu são eternas, mas a ficção científica nem sempre está assim tão longe de oferecer respostas viáveis.
Comente esta notícia