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Crónica • "Um candidato idóneo", de Mark Twain: alguns paralelos com o atual cenário político português

Samuel Clemens / Edwin Larson / Oil on canvas, 1935 / National Portrait Gallery, Smithsonian Institution

 

 "Um candidato idóneo", de Mark Twain: alguns paralelos com o atual cenário político português 

Uma crónica de Luís G. Rodrigues

Navegando pela incerteza da pandemia do Covid-19, o barco – essa expressão tão utilizada nos media tradicionais – da política portuguesa, apesar de ultimamente estar à beira do naufrágio dia sim dia não, tem sido uma bela bóia salva-vidas no que diz respeito ao ridículo a que os seus intervenientes se têm prestado. É precisamente disto que Mark Twain faz troça nos seus textos humorísticos – não da política portuguesa contemporânea, coitado, morreu antes da Implantação da República – mas sim do absurdo picaresco a que os políticos – todos eles – chegam sem se darem conta.

Compilados pela Antígona Editores Refractários sob o título Um candidato idóneo, os textos em questão contam com a tradução de Madalena Caramona, prefácio de Manuel Portela (que tem tanto de explicativo, como de indispensável; lá chegaremos) e ilustrações de capa e contracapa de Luís Henrique.

Não é de forma ingénua que nesta crónica aparece a expressão “medias tradicionais” imediatamente na frase de abertura. Como bem entendia Twain – e ainda melhor explicou Manuel Portela no seu prefácio exemplar – “(...) o processo democrático depende da mediação da letra de imprensa e dos seus efeitos na circulação de imagens dos candidatos”[1]. Os meios de comunicação não são um fim em si mesmos, mas sim um meio para algo: são flexíveis e adaptam-se aos sistemas políticos e económicos em que estão incluídos (no cenário português, caso restem dúvidas a alguns leitores, vive-se numa democracia liberal). Como bem esclareceu Manuel Castells no primeiro volume de Era da Informação: Economia, Cultura e Sociedade: “Batalhas culturais são as lutas pelo poder da Era da Informação. São travadas basicamente dentro da mídia e por ela, mas os meios de comunicação não são os detentores do poder. O poder, como capacidade de impor comportamentos, reside nas redes de troca de informação e de manipulação de símbolos que estabelecem relações entre atores sociais, instituições e movimentos culturais por intermédio de ícones, porta-vozes e amplificadores intelectuais.”[2] Quem diz “batalhas culturais”, pode também dizer políticas ou económicas, visto que ambas as coisas não se dissociam facilmente.

Twain, devido à sua perspicácia sagaz do paradigma político americano (ele próprio interveniente político com ligações ao Partido Republicano, ainda que negasse a devoção partidária total), entendeu que esta espécie de construção de candidatos/partidos depende, inegavalmente – e em grande escala – à forma como os media tradicionais edificam estes mesmos intervenientes.

Se há coisa que não tem faltado ultimamente na vida política portuguesa são intervenções mediáticas de agentes políticos preponderantes; intervenções essas distribuídas de forma desigual entre intervenientes. Basta ver que, em Janeiro de 2021 – mês de eleições presidenciais em Portugal –, de acordo com o Grupo Marktest, o candidato da extrema-direita André Ventura arrecadou um total superior a 7 horas[3] de exposição nas notícias televisivas dos portugueses, ultrapassado apenas pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. É de notar que os restantes candidatos ao mesmo cargo (Ana Gomes, João Ferreira, Marisa Matias, Tiago Mayan e Tino de Rans) não ultrapassaram as 2 horas de exposição[4]. Também desta forma se constroem resultados políticos, como já foi explicado.

Ainda assim, com mais ou menos horas de protaganismo em televisão, e independentemente da sua ideologia – ou a que eleições concorrem – tanto partidos como os seus respetivos representantes não deixam de cair na armadilha do caricato. E Twain, nos seus textos, previu que assim seria, já que existem inúmeros paralelismos a serem estabelecidos entre a obra do autor americano e a nossa bem portuguesa política.

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Foto: Direitos Reservados

Comecemos pelo texto entitulado Falsa elegia a um militante defunto, em que logo no início se pode ler a seguinte frase: “Tanto vigor, tanta força, tanta confiança e tanto orgulho demonstrava há poucos meses; e – ó sorte! – quão morto o vemos hoje! Sugiro que se troque o centro da homenagem e se substítua pelo CDS-PP. Quão morto está o CDS! Numa sondagem recente da Aximage para o DN/JN/TSF, o partido democrata-cristão aparece com 0,3%, atrás da recentemente formada Iniciativa Liberal, que aparece com 3,5%[5].

Durante toda a leitura percebemos que a restante crítica de Twain advém da devoção obssessiva ao partido que o próprio compara a uma escravatura (“este homem era um escravo; não um escravo arisco nem turbulento (...) o Partido era o seu amo e senhor”). Estará também o próprio CDS-PP – e seu respetivo líder Francisco Rodrigues dos Santos – demasiado refém da sua perspetiva (histórica) conservadora cristã ao negar uma liderança mais progressista dentro do que é possível na sua linha? Ou os fenómenos IL e Chega vieram preencher um espaço mais apelativo – nomeadamente por vias das redes sociais – que o CDS não soube acompanhar? É possível que as tentativas de atrair um eleitorado perdido para a extrema-direita tenha descaracterizado o eleitorado que se manteve fiel? Talvez.

 Em 2009, o CDS angariou 10,43%[6] dos votos para a XI Legislatura; em Janeiro de 2021, as sondagens apontam para que fique com menos de 1%. Algo não correu bem, diria.

Por isso, tragam as velas e as flores – escrevam os discursos de velha glória – é tempo de prestar homenagem ao CDS (quase) defunto! No entanto, há sempre algo que pode acontecer...não nos esqueçamos que os militantes do CDS acreditam em vida após a morte – pode ser que Deus goste tanto do CDS como o CDS gosta de Deus.

E se o CDS está quase defunto, há outro partido que se ergueu com uma ideologia que se pensava morta – ou pelo menos muito fraquinha, nos cuidados paliativos – em Portugal. Como se diz em inglês: wrong! Está aí viva, infelizmente.

O Chega! – também conhecido como “o partido do Ventura” – é uma autêntica mina mediática à qual os media não resistem pois as audiências, pelos vistos, falam mais alto que a decência democrática exigida: o desfazamento entre representação parlamentar (1 deputado) e atenção dada ao partido em comparação aos outros partidos com o mesmo número de deputados: Iniciativa Liberal e Livre (deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira).

Apesar disto – da atenção, do culto ao líder – não deixa de ser curioso que o presidente do Ch! use a demissão como arma política de forma frequente nos seus discursos. Recentemente, afirmou que se demitia se ficasse atrás de Ana Gomes nas presidenciais (e, como de facto ficou em terceiro lugar nas eleições presidenciais, formalizou a sua demissão no fim do mês de Janeiro, sendo que vai a eleições novamente em Fevereiro – e vai ganhar, evidentemente[7]), mas já o ano passado tinha advertido os militantes do seu partido para uma suposta demissão enquanto tentava ver a sua equipa aprovada pelas bases[8].

Dito isto, que melhor texto se adequa a esta realidade do que Dos factos que concernem á minha demissão ? Na mouche!

Nesta sátira, o autor faz pouco do “Honorável Mark Twain, funcionário do Comité de Conquiliologia do Senado” que se demite por achar que não lhe permitem uma participação séria no processo político. Chateia constantemente Secretários de variadas áreas, designadamente do Tesouro, da Marinha e da Guerra, a quem faz entender o seguinte: “Deveria congregar mais os índios – juntá-los todos num local mais conveniente, onde houvesse provisões para ambos os lados, e depois iniciar um massacre total. Expliquei-lhe que para um índio, não há nada tão persuasivo como um massacre total. Caso não pudesse autorizar o massacre, disse-lhe que a segunda melhor hipótese (...) seria sabonete e instrução.”[9] Desde a desvalorização de toda uma comunidade que o próprio vê como inferior – e portanto dispensável de existir – a retratar essa mesma comunidade como menos civilizada ignorando todas as dificuldades sistémicas que passam, as semelhanças são assustadoramente vísiveis. Era bom poder dizer: “Isto contado ninguém acredita!”. 

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Foto: Direitos Reservados

Felizmente Twain era o oposto de tudo isto, usa apenas o seu nome em tom de escárnio.

Este indivíduo quer entrar em reuniões do Executivo, onde não pode, obviamente, entrar, já que não padece da patente hierárquica necessária. Por ser recorrentemente enxovalhado pela sua postura rídicula, acaba por se demitir.

Ventura, apesar de tudo, tem permissão para entrar em reuniões, debates e atender a toda a atividade politica. Mas para participar há que estar presente. Se é para faltar a reuniões plenárias e faltar a debates, Ventura podia dar a sua vez ao coitado do Honorável Mark Twain, funcionário do Comité de Conquiliologia do Senado que tanta vontade tem de participar em coisas do género! Para quem demonstra tanta vontade de exercer a liberdade de expressão, falta demasiadas vezes a ocasiões onde deve assumir o que prometeu ao seu eleitorado.

É sabido que o líder do Ch! faz uso de uma estranha liberdade de expressão; liberdade essa que faz com que o mesmo mande deputadas para as suas respetivas “terras”, que permita neo-nazis no seu partido (esses defensores da liberdade!), que apelide minorias étnicas como bem entende, que sugira “controlar” a rede social Twitter se vier a governar[10], ou que implemente a lei da rolha no seu partido[11]. Porém, aquando do momento em que alguém o crítica, queixa-se de tentativas de censura ao seu discurso. Temos aqui o típico caso do populista que utiliza a liberdade de expressão não como valor, mas como instrumento: diz o que bem entende enquanto não chega a governar só para depois limitar a liberdade de expressão a opositores políticos. Honorável Twain, venha tirar notas!

Por outro lado, em campos mais sistémicos – menos entrópicos – e definitivamente democráticos, estão o Primeiro-Ministro António Costa e o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa que andam na luta pela custódia da culpa. Sim, da culpa! Como quem luta pela guarda de um filho após divórcio ou como uma criança é capaz de pelejar pelo último Calippo. Sempre que questionados – e às vezes nem é preciso que o sejam – acerca das responsabilidades pela pandemia, ambos afirmam a alto e bom som: É minha! A culpa é minha! Por favor culpem-me por tudo! Maior facilidade de contágio das novas estirpes que vão aparecendo? Irresponsabilidade e incompetência alheia? Incumprimento menor por parte da população? A culpa é minha, por favor! E se puderem tragam também o remorso, gosto muito do sabor  – espera, mas não estou a sentir sabor...

Esta necessidade de admitir os erros à comunicação social – com o consequente aproveitamento desses erros para fazer notícia – é hiperbolizada logo no texto de abertura Um candidato à presidência. O candidato do texto, ainda que não assuma culpas por pandemia nenhuma, admite ter perseguido o seu avô reumático e não esconde que o forçou a subir a uma árvore enquanto disparava “chumbada após chumbada”[12] contra as suas pernas. Isto porque o seu avô ressonava. Para além disto – como se fosse pouco – confessa que enterrou “uma tia debaixo da videira” porque a “vinha precisava de adubo”[13] e “ a tia precisava de ser enterrada”[14]. É deste humor fino, refinado e absolutamente delicioso que os textos de Twain presentes nesta edição são feitos.

E se lhe disser, caro leitor – fazendo agora uma digressão até ao que está à esquerda do PS – que suspeito que os militantes do Bloco de Esquerda leram o Coerência de Twain e que o levaram demasiado à letra, acredita? Pois bem, repare.

 O autor, nesta sátira, volta a criticar a cegueira ideológica a uma doutrina ou partido e esclarece que mudar de opinião é o que faz o mundo avançar – concordo – e cita os nomes de Washington, Garrison, Galileu, Lutero e Cristo, seguido de um excelente curto parágrafo: “A lealdade a opiniões petrificadas jamais quebrou uma grilheta nem libertou alma alguma neste mundo – nem nunca o fará”[15].

Talvez seja por esta razão que o Bloco de Esquerda decidiu trocar as voltas ao seu eleitorado em diferentes plataformas. No Instagram, são adeptos de Che Guevara e a guerrilha parece uma opção viável, mas em entrevistas aos media tradicionais tanto Catarina Martins, como Marisa Matias (Marisa disse-o até nas mais recentes presidenciais) declaram-se sociais-democratas. É bom mudar de opinião, no entanto parece-me útil que o Bloco clarifique se os seus eleitores têm de comprar roupa confortável para atravessar o Gerês a rastejar ou se devem escrever no Twitter: “Mais Estado Social, por favor! (com uma bandeirinha de Cuba ao lado)”. Só para evitar comícios desconfortáveis entre revolucionários e reformistas.

***

Por fim, e de modo a concluir, sublinharia apenas uma nuance crucial do que estes textos de Twain representam. São mais que textos humorísticos, são opiniões políticas que o autor veicula através da sua escrita irónica sem comparação. Mas o mais importante – e isso está bem claro quando o próprio Mark Twain se inclui no centro da história – é o facto do autor não se levar assim tão a sério sem medo do rídiculo. As opiniões estão lá – algumas taxativamente críticas duras – para quem as quiser ver. Twain não se reduziu, isto é, não teve receio que a ironia fosse demasiada para um certo público – mais à direita ou mais à esquerda, tanto faz – que não percebesse o exagero cómico e ficasse com uma opinião errada acerca de si. A partir do momento em que o humor – e seus respetivos ou supostos limites – deixar de ser o que cada um define para si como tal, seremos reduzidos.

 


Notas:

 

[1] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017.

 

[2] Castells, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Volume I: Sociedade em Rede. Brasil: Paz e Terra, 1999.

[3] «Protagonistas da informação em janeiro de 2021». Acedido em Fevereiro de 2021. https://www.marktest.com/wap/a/n/id~2728.aspx

[4] «Protagonistas da informação em janeiro de 2021». Acedido em Fevereiro de 2021. https://www.marktest.com/wap/a/n/id~2728.aspx (Nota: Estes dados excluem debates, entrevistas e programas em que os candidatos tenham participado. O tempo contabilizado faz apenas referência à quantidade de notícias em que cada candidato foi protagonista)

[5] Lopes, Ana Sá. «O fim do CDS? 0,3% na sondagem “DN”/“JN”/TSF». PÚBLICO. Acedido 15 de Fevereiro de 2021. https://www.publico.pt/2021/01/03/politica/noticia/fim-cds-03-sondagem-dnjntsf-1944881.

[6] «Resultados Eleitorais». Acedido em Fevereiro de 2021. https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/ResultadosEleitoraisAnteriores.aspx.

[7] SAPO. «André Ventura formaliza demissão e submete-se a nova votação dos militantes do Chega na terceira semana de fevereiro». SAPO 24. Acedido em Fevereiro de 2021. https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/andre-ventura-submete-se-a-nova-votacao-dos-militantes-do-chega-na-terceira-semana-de-fevereiro.

[8] ionline. «Chega. Ventura testou partido três vezes e ameaçou demitir-se». Acedido 15 de Fevereiro de 2021. https://ionline.sapo.pt/artigo/709328/chega-ventura-testou-partido-tr-s-vezes-e-ameacou-demitir-se?seccao=Portugal_i.

[9] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017.

[10] Twitter. «André Ventura no Twitter». Acedido em Fevereiro de 2021. https://twitter.com/AndreCVentura/status/1267802081793994754.

[11] Jornal Expresso. «Ventura impõe lei da rolha no Chega». Acedido 15 de Fevereiro de 2021. https://expresso.pt/politica/2020-12-05-Ventura-impoe-lei-da-rolha-no-Chega

[12] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017.

[13] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017.

[14] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017.

[15] Twain, Mark. Um candidato idóneo. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017