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COMING UP | Malcom & Marie

Um texto feito para grandes atores, uma cena teatral e diálogos soberbos constroem o mais recente filme de sucesso da Netflix, que chega atrasado para o comboio dos Oscars 2021 mas sai disparado como um front runner antecipado para a cerimónia do próximo ano. Não é excelente, mas traz uma abordagem única sobre um relacionamento tóxico, onde a violência, pelo menos física, não serve de tónica. Temos um novo drama puro e duro numa linha de retratos realistas da Netflix, que mesmo sem se apresentar como algo tão bom quanto Marriage Story ou Pieces of Woman conquista com atuações absolutamente destrutivas, em vários sentidos da palavra. Fazer uma análise a Malcom & Marie não é fácil, porque está é uma longa-metragem imperfeita, mas altamente complexa e pejada de detalhes e metalinguagem que nos orientam nesta reconstituição do que são as discussões entre casais. No fundo, Malcom & Marie é um argumento que fala de afetos e da responsabilidade que as palavras têm nas nossas vidas. Quando um vidro se parte podemos cola-lo novamente mas nunca será o mesmo que era antes da pancada. Malcom & Marie é o vidrinho que o serviço de streaming tem para nos apresentar e que vamos debater na edição desta semana do Coming Up. Fica connosco numa viagem pelos picos de excelência e as derrocadas da ação neste novo filme, prometemos que há muito para contar!

A escolha de ter dois artistas como personagens centrais da história foi uma wild card perfeita. Além de casar a constante insatisfação da classe, que é ávida de melhores resultados e oportunidades a cada momento, define o tom ideal para o carácter aparentemente egocêntrico de Malcom. A metalinguagem que este alicerce traz é absolutamente fantástica por dois motivos muito distintos. Primeiro porque é algo que quem assiste consegue identificar rapidamente, mesmo que não seja um consumidor aficionado da sétima arte, em segundo dá-nos um intertexto que desenha a personalidade dos dois protagonistas através das referências a ícones da cultura. Apesar de Malcom ser o grande visado nas comparações, as referências funcionam nos dois sentidos, com Marie a colocar-se em plano de contraponto com a imagem de génio que Malcom construiu de si mesmo. O argumento é exímio na utilização desta base do contexto artístico e eleva-o ainda mais quando entra pela constante insatisfação do artista incompreendido que rejeita uma visão do seu trabalho que vá para além daquela que ele próprio definiu. Este é um dos grandes fatores que agarram logo de raiz o texto e que conduzem uma boa percentagem dos diálogos, algo que sem querer dá mais um indicador de que Malcom & Marie terá realmente um futuro risonho nas grandes premiações, porque se há um fetiche dentro de Hollywood que nenhuma geração parece conseguir mudar é o amor que a indústria tem por películas que retratem um pouco do seu universo. No fundo é Hollywood apaixonada por si mesma. 



Dificilmente num futuro próximo vamos assistir a uma construção de diálogos num romance tão apurada quanto a deste guião. A crueza, a malvadez que tenta ferir o outro, mas também o constante balancear entre o ódio e o amor são algo que nos transmite uma verdade bastante despida. É algo muito intimo, numa representação muito realista de uma qualquer discussão mais feroz que a maioria dos casais já teve. Mas não é apenas esse o destaque. Na trama há problemas maiores, e esse não tão corriqueiros, que se levantam, como a fama ou o consumo excessivo de drogas. Aqui o ponto fundamental não é o encaixe que dão aos temas mas sim a forma como os exploram sem precisarmos dos típicos flashbacks ou de enquadramentos que nos facilitem o entendimento. É um exercício prático que este texto obriga o espectador a fazer, e é aqui que a narrativa mais toca nos meandros clássicos do teatro. Não há altivez na hora de contar a história deste casal, há sim a necessidade de um retrato fidedigno de uma qualquer discussão de casa, por mais voltas que os diálogos deem é isto: Trazer para o ecrã uma discussão que é um exemplo puro e duro da toxicidade que um relacionamento pode atingir. Contudo, aquilo que é uma das grandes vantagens do texto é um dos seus maiores defeitos para quem vê. O filme é fechado naquelas duas figuras numa constante troca de argumentos que não os deixa descansar. Em nossas casas é assim, mas no cinema precisamos de mais vida e pormenores para nos mantermos agarrados durante uma hora e meia. É certo que a conversa não é estática, mas no fim, como em qualquer típica discussão, já entramos num loop tão grande que se torna maçador para a audiência. 


Mas vamos ao elenco, com os dois protagonistas a terem em comum um ponto bastante interessante. Ambos vêm de projetos de sucesso e onde entregam performances que fogem das regras. Não é uma surpresa completa que cheguem a Malcom & Marie e sejam absolutamente destruidores em cena, mas acho que podemos concordar que as expectativas neste quesito foram superadas em larga escala. Zendaya está mais que confirmada como o futuro de Hollywood, a escola de Rue em Euphoria dá-lhe uma fluidez e sinceridade de interpretação que se tornam absolutamente fulcrais para entrarmos na complexidade de Marie. A protagonista é tudo menos linear, aliás nada neste filme é linear, mas a interpretação de Zendaya é algo construído com um detalhe que pouco se vê no cinema, é uma conceção muito mais teatral, em que não falham as expressões, os gestos, e todos os momentos em que está no ecrã ela consegue arrebatar sem quase precisar de dizer uma linha do guião. O maior destaque na performance da atriz vai claramente para o momento de improviso da personagem com uma faca em que esta tenta provar que merecia uma oportunidade. A cena destrói Malcom mas desarma-nos também, porque há ali um fator de manipulação que molda a nossa visão de Marie dali em diante. E é nesse momento que talvez entendamos que ela não é uma vítima na história, na verdade ela é muito mais dominante nesta relação do que Malcom. 



Numa contracena perfeita John David Washington é uma aposta segura nas premiações, porque de longe o seu Malcom poderia chegar a um texto tão forte com alguns pretensiosismos. Não acontece, pelo contrário dá-nos a leitura perfeita da imagem que temos de um artista, num jogo em que o ego manda em cima de qualquer ligação de afeto e em que o sucesso é a única palavra presente no dicionário, isto tendo em linha de conta apenas a primeira definição que o protagonista nos entrega, porque o grande show de interpretação ainda estaria por chegar. É quando saímos da bolha do meio artístico que Malcom se despe realmente do papel de culpado nesta história, quando entramos na viagem ao passado e invertemos os lugares das vítimas, Malcom torna-se em mais uma prova de como as aparências enganam, ao mesmo tempo que entrega, de uma vez por todas, a grande moral por detrás destes romance, a de que numa relação destruída ambos são culpados e ambos são vítimas. A cena em que Malcom reage à crítica ao seu mais recente filme é o grande momento da atuação de John David Washington, tudo o que lhe sai naquele momento é tão visceral que se nos dissessem em alguma entrevista que tinha nascido, em grande parte, de um momento de improviso do ator, não seria um choque. Além da química que existe entre os dois, e inevitável dizermos que por melhor que o guião seja dificilmente conseguiríamos imaginar alguém com estas características a entregar planos sequência e monólogos gigantes intercalados tão bem quantos estes dois novos nomes da industria de Hollywood. Para quem já tinha gostado de ver o ator como protagonista em Tenet, aqui, em termos de interpretação, o show é ainda maior.


Colocando tudo na balança, Malcom & Marie não é perfeito, e tem alguns problemas que nos fazem perder a atenção, mas ao mesmo tempo é um texto tão carregado de frases fortes e interpretado de forma brilhante que realmente faz valer a pena ser visto. O grande problema da película é o tempo, apesar de ser um projeto com menos de duas horas, a constante troca de argumentos, a sequência gigante de informação que recebemos e alguma claustrofobia causada por aquela casa, tornam a longa-metragem difícil de assistir com a mesma curiosidade até ao final. Tem do seu lado o facto de na vida real o contexto e forma de uma discussão entre casais ser realmente este mas no critério do realismo, a própria Netflix já entregou melhores projetos recentemente, como são os casos de Mariana Story ou Pieces of Woman, que têm essa mesma métrica de cenas filmadas que poderiam ser retiradas de momentos da vida de qualquer pessoa real, ao jeito de Boyhood. Aqui essa sinceridade foi tão envolvida no papel dos atores e dos diálogos que parece existir alguma falta de atenção em pensar de que forma a audiência iria receber esta trama. Não podemos encerrar sem falar de um dos mais importantes temas do filme: A importância das palavras. Como o simples facto de não darmos o devido valor às pessoas, ou de tomarmos tudo como garantido pode ser o pontapé de saída para a rutura. Aquela última troca de agradecimentos fechou com chave de ouro o guião e quase nos dá vontade de passar uma borracha por cima nos trinta minutos a mais que Malcom & Marie tem. É uma corrida de cem metros, mas que vale a pena pelo respiro do teatro que se nota que foi respeitado neste guião, por isso vale a pena que lhe metam os olhos em cima.