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COMING UP | Lupin

 

A Netflix encontrou a sua própria janela de oportunidade para entrar num universo de investigação astuto que revisita clássicos como Sherlock Holmes, contudo, a Netflix já nos habituou a não seguir narrativas lineares e na sua procura por fazer diferente inverte papéis e dá protagonismo ao assaltante, desenhando o lado da lei pelo ponto de vista corrupção. A antítese do género volta a servir-se do mesmo paradoxo que deu fama a La Casa de Papel e funciona na perfeição para nos prender numa trama astuta que não tem medo de ser erudita e que procura públicos diferentes dos estilos blockbusters que têm bebido da essência de Sherlock Holmes. O tiro no escuro é certeiro conjugando boas interpretações com a beleza parisiense e o velho jogo do gato e do rato que prende sempre e nos faz render ao fim de poucos minutos de cena. Juntam-se a isso vários enigmas que só tornam o texto da série em algo ainda mais apetecível para no final de tudo criar uma harmonia diferente da maioria das produções que tem no seu catálogo e com uma margem de evolução tremenda que poderá tornar Lupin num futuro trunfo do serviço de streaming contra a concorrência aguerrida de 2021. Façam as malas porque esta semana o Coming Up viaja por outros caminhos para te contarmos o que há de bom no novo êxito da Netflix, fica connosco!

Lupin é tipicamente francês na produção e no argumento, rico da influência dos mistérios das obras clássicas é contada com a modernidade suficiente para sair dos estereótipos habituais que já nos deixam antever tudo nos primeiros capítulos. Mas é sobretudo na estética que o país de origem marca por ser diferente, no bom jeito do cinema francês em que tudo é saboreado e o ritmo é fator secundário em detrimento da proximidade e realismo de cada cena, fazendo com o espectador se envolva com cada personagem de um ponto de vista quase documental e construindo a afeição aos pontos quase como se se tratasse de relacionamento natural, de uma amizade a florescer. É isso que talvez nos faça, no arranque da série, começar a nossa ligação com Assane com o pé esquerdo. Não há nenhum imediatismo na hora de nos fazer torcer por aquele homem, por mais triste que seja a sua história de vida. Mas aquilo que poderia ser uma sentença que quebraria a nossa vontade de assistir a série torna-se numa virtude, porque em cada episódio ganharmos algo, um pequeno pormenor, que nos faça realmente ter afeto pelo protagonista ao ponto de desculparmos as decisões erradas. A chamada profundidade de personagem é feita à nossa frente, com Omar Sy a trazer para o papel um background que exige bastante estudo e com a frontalidade de saber muito bem o que é que nos quer apresentar e contar em cada cena. As camadas ajudam a prender-nos e fazem de Lupin algo praticamente inédito em streaming nos tempos que correm.

O jogo com os anacronismos é excelente e mesmo o enredo da luta de classes entre ricos e pobres é feito com eloquência e requinte. Todas as soluções básicas que constroem os alicerces destas tramas de mistérios foram embaralhados para nos darem sequências no mínimo diferentes numa proposta que poderia passar por ser apenas mais uma história de vingança com um lado detectivesco a acontecer como pano de fundo. As já faladas influências de Sherlock Holmes acontecem não só nas saídas de cena magistrais de Assane, que apesar de já sabermos que se safará da captura nunca sabemos como e consegue sempre surpreender-nos com ideias de génio, mas também na inteligência a cima da média que o personagem aparenta ter. Assane consegue antever a maioria das ações da polícia, fruto do estudo e da experiência, mais ou menos mesmo género do Professor de La Casa de Papel, mas com a graciosidade dos detalhes típica da versão de Benedict Cumberbatch em Sherlock. Em comum com estes dois personagens de sucesso, Assane tem a personalidade afetada por uma tragédia que lhe retira alguma afeição e torna a maioria dos seus movimentos em algo mecânico, um engenho do argumento que acerta no ponto certo ao criar uma identidade que por fugir dos padrões nos puxa a atenção para entendermos até onde os traumas e privações alteraram o seu sentido de humanidade. No mesmo paralelo que estabelecemos anteriormente, o assaltante tem o seu ponto fraco na ex-mulher e no filho é só eles conseguem mexer com o seu plano e despertá-lo da aparente apatia, tal como acontece com Professor quando perde Raquel e deixa o seu plano exposto por se ter deixado envolver. Assane é fruto da junção dos dois anti-heróis, e quem bebe de uma fonte tão boa nunca pode ser menos que excelente.

Na primazia da história e sem se perder com floreados que lhe retirem o foco, Lupin é construído em cima de Assane com pequenos apontamentos exteriores que acrescentam e valorizam, mas que não assumem um destaque ativo que os faça estarem à altura do protagonista. Por mais que já seja possível antever algum potencial no arco de Guedira, ao ponto de ser o candidato perfeito para ocupar o lugar de Watson neste Sherlock Holmes invertido, ou em Raoul, que mesmo com poucas intervenções já se provou como uma figura bastante rica deste universo, a lógica de manter o centro em Assane faz com que exista tempo para que todas as virtudes e defeitos nos saltem à vista e nos cativem. Além disso, na técnica da série é uma aposta vencedora para não deixar pontas soltas dentro de um texto que tem uma margem de erro gigante, pois todos os planos são detalhados à vista dos espectadores e seria facílimo apontarmos o dedo caso algum erro pelo descuido de se focar em outro núcleo surgisse. É tudo muito amarrado e interligado deixando um rasto de continuidade que nos envolve e ajuda a que mesmo no seu estilo de slow burn seja altamente maratonável e que as cenas que servem de conexão do evento A ao B sirvam apenas de um pequeno respiro e não se tornem nos habituais e maçadores momentos parados que os nichos que consomem frequentemente longas-metragens francesas tanto adoram. No fundo, Lupin faz um trabalho de aproximação brilhante na hora de trazer o realismo e veracidade das cenas saboreadas tipicamente europeias para um casamento com a adrenalina já habitual nas séries de streaming com o cunho da Netflix e que absorvem os elementos dos sucessos dos Estados Unidos.

E quanto a elenco? Omar Sy é, talvez, um dos mais reconhecidos talentos do cinema francês, mas aquilo que se poderia torna numa mera jogada de marketing aqui junta-se talento que resultam numa interpretação incrível, mas que não surpreende quem já acompanha a carreira do ator. E não, isto não é um defeito nem se trata de uma desvalorização do trabalho de Omar Sy, a questão é que para criar Assane, o intérprete parece ter feito um estudo aprofundado e criado uma narrativa para cada vivência do protagonista, algo que se estivéssemos a falar de um outro ator poderia ser motivo para uma longa conversa, mas quando o nome é o de Omar Sy já não surpreende, porque é esse o método de trabalho visceral na hora de abraçar um novo projeto. E podemos dizê-lo com alguma propriedade quando temos exemplos tão vincados quanto o recente Le Prince Oublié, que por mais básico que seja tem uma atuação louvável de Omar Sy, Samba ou o icónico Intouchables, que mesmo que seja visto dezenas de vezes consegue sempre tocar-nos em algo sentido. É difícil dizermos que Lupin não é o melhor trabalho de Omar Sy porque a sua entrega e criatividade são imensas, mas num currículo em que aparece um personagem como Driss é difícil aparecer outro que esteja preparada para gladiar. O que não invalida que se Assane tivesse outro intérprete nunca seria, pelo menos aparentemente, tão interessante quanto a visão de Omar Sy para o papel. Valem, ainda, as boas contracenas do ator, sobretudo com Raoul que nos faz entender a força do filho do protagonista mesmo sem serem precisas grandes introduções. Um magnetismo que faz a série girar sobre si sem esforço é algo digno de poucos, mas merecedor do talento de Sy.

Com um vilão meio escondido que movimenta O xadrez sem quase dar as caras ao eterno jeito de Moriarty e uma proposta de regresso cativante que poderá trazer novos sentidos e outros protagonistas para dentro da narrativa principal, Lupin começou no tom certo e com o número de capítulos perfeito para não desgastar. Claramente a série foi desenvolvida para uma primeira temporada mais longa, mas só ganhou por terminar na mid season e não se estender com mais enigmas que pudessem manchar o percurso praticamente imaculado da primeira leva de capítulos. Contudo, o regresso confirmado poderá trazer consigo vários problemas. Por mais interessante que seja a premissa de ter o rapto de Raoul como plot, a sequência final deixa a sensação de que poderemos perder um pouco da proposta de cenas elaboradas com paciência e ponderação dando lugar a muito mais planos de ação que oponham Assane aos Pellegrini, esperemos que a base não seja formatada e que tudo se mantenha na mesma lógica, porque é este o ponto que cativa em Lupin, o ser disruptivo dentro do que já é expectável em produções com o selo original da Netflix. A abertura do twist final deixa-nos com milhares de teorias em cima da mesa, mas analisando à luz do que já vimos em Lupin certamente tudo que há imaginamos não será o resultado final. Esperemos que a surpresa da segunda metade faça jus à maestria da diferença que a primeira nos trouxe. Para já, Lupin sobe na lista e torna-se certamente no original francês mais apetecível do catálogo da plataforma de streaming.