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COMING UP | Bridgerton

No romance há pouco por onde fugir, mas há espaço para evoluir e é Shonda Rhimes que o prova no seu primeiro trabalho feito em parceria com a Netflix. Entre a grandiosidade dos cenários e a beleza do guarda-roupa existem os meandros de uma história de amor que atravessa os séculos e que não se escuda num contexto histórico para trazer uma nova forma de contar romances de cordel. Sem olhar a credos ou diferenciações de cor, Bridgerton não ignora o facto de estar a dar papéis de destaque a personagens negros e apesar de manter à tona o papel da mulher consegue subverter as ideias pré-concebidas que temos quando olhamos para a sinopse e expandir uma abordagem à figura feminina em sociedades como esta na mesma linha de pensamento que tornou tão diferentes filmes como Suffragette ou Little Women. Shonda e a sua luta por representatividade encontraram uma nova janela e mais uma vez acertaram com maestria na escolha. A produtora supera aqui um possível trauma trazido do flop Still Star-Crossed e consegue convencer-nos a ver os episódios em maratona, tudo porque em Bridgerton o que parecia ser uma sinopse com mais do mesmo ou até uma descida de qualidade em relação a outros trabalhos dentro do mesmo tema se torna numa série viciante, com comédia e discussões laterais a conquistarem a nossa atenção e a provarem que ainda é possível inovar dentro de géneros que já se tornaram banais e clichê. Repetem-se formulas, há o amor típico das séries teenager, há estereótipos na narração, mas há margem de tudo isso há a mesma luta de Scandal, Grey’s Anatomy e How To Get Away With Murder. Está composto o ramalhete e nós vamos analisá-lo em mais uma edição do Coming Up.

O arranque é, talvez, o processo mais complicado em Bridgerton, que nos introduz a um universo algures entre tramas como Cinderella ou The Selection. Nesse meio termo há o primor de ser diferente, com a ajuda do budget certo, mas há também uma longa introdução que pode afastar o público que não consome habitualmente argumentos de época. Até à entrada do primeiro folheto de Lady Whistledown, Bridgerton não nos agarra e parece ser mais um concurso de misses que relega a mulher à beleza. Ter uma rainha negra como figura de maior destaque dentro daquela sociedade já nos deixa com a pulga atrás da orelha, mas só no terceiro episódio temos um vislumbre de que esta personagem não foi simplesmente entregue a uma atriz negra como poderia ter sido a qualquer outra, não, há um contexto que eleva a essência da Rainha e que talvez até tivesse servido melhor o argumento se tivesse sido dado a conhecer logo nos primeiros minutos da série, desfazendo mitos e arrumando a questão de uma vez só. Não que não acabe por o fazer depois, mas, talvez, tivesse um maior impacto se confrontasse o público logo à partida com aquilo que são os alicerces daquela monarquia e isso ajudaria a que o público se conectasse pela afeição. À parte desta questão, há cuidado e esforço para fugir do lugar comum com as figuras que orbitam à volta do principal casal, mas até com Daphne, que tem carisma e personalidade que lhe dão nuances e a fazer parecer mais que uma simples dama. O núcleo familiar aproxima-nos ainda mais da protagonista e dá-nos uma empatia imediata que nos agarra desde que é feita a primeira reunião. O começo é atribulado, mas a partir da metade do primeiro capítulo não há ninguém que seja fã de romances que não torça pelo casal principal, sem que eles se tenham cruzado mais do que dois minutos no ecrã. Há uma química rara entre Daphne e Simon que já nos deixa a garantia de sucesso. Depois de instituir o casal podemos avançar para os outros núcleos, e é aí que Shonda arrasa trazendo dramas pessoais vistos por outros focos e personalidades tão estruturadas como as que vemos em Grey’s Anatomy.

Mas vamos entrar pelo universo destas personagens para falarmos de Daphne, aquela que podia ser apelidada da protagonista dos paralelos. Enquanto na beleza nos faz lembrar a pose de Hermione Granger, no carácter parece ser o casamento perfeito entre a versão de Lily James para Cinderella e a mais recente adaptação de Jo March ao mundo do Cinema. Mais do que a aparência, que nas primeiras cenas parece ser o que move esta jovem, Daphne chega com a atitude de fazer diferente, de revolucionar, tanto quanto possível, sem perder o foco em cumprir o seu papel nesta sociedade. O casamento não é esquecido, mas é bom ver uma mulher assumir as rédeas da ação e ser ela a ter um grande peso na decisão final. O argumento não enaltece a representatividade ao ponto de a tornar em algo demasiado irrealista para uma história de época, mas consegue dar-lhe as nuances certas para que ela se imponha e seja a autora da própria vida. A contracena com Anthony é uma das mais bem conseguidas em Bridgerton, sobretudo porque não há necessidade de diminuir nenhum dos personagens para mostrar personalidade e representatividade. Mantendo os papéis e padrões, os dois irmãos crescem a cada cena, dando fôlego para que o argumento seja ainda mais ousado em explorar esse poder feminino tão típico de produções de Shonda Rhimes. A sexualidade assume uma parte ativa na trama de uma forma bem inesperada, mas a surpresa fica apenas do lado do espectador. Os diálogos e a forma como são retratadas as primeiras descobertas da protagonista, e forma como o texto dá importância à libido das mulheres sem vergonhas ou medo de julgamentos lembra um pouco da abordagem de Black Swan ao tema, pelo menos na fase inicial em que o enredo se aventura por esse caminho, porque na primeira relação sexual entre Daphne e Simon parece ser uma versão feita com extremo bom gosto do amor dos protagonistas de Fifthy Shades of Grey. O que aparentemente poderia ser uma crítica, aqui foi o momento em que história se imbuiu de um bom exemplo de sensualidade para retratar o tema com a clareza necessária sem perder toda a harmonia criada até então. No final, o resultado não poderia ser melhor e ainda ajuda a quebrar alguns tabus que o público, tradicionalmente adolescente, que consome este tipo de séries possa ter. Uma mensagem no ponto certo e com educação pelo meio.

E se no elenco feminino, o ambiente e texto são dignos de aplauso, no masculino há um abraço que envolve Simon em cada cena, dando-lhe as nuances necessárias para que ele não perca dentro de arcos tão ricos quanto aqueles que navegam na beira do argumento de Bridgerton. Antes de avançarmos para a fase adulta, vale ressaltar o pormenor, que não foi feito por acaso, que o Duque tem em comum com o personagem central de The King’s Speech, a gaguez. Aquilo que poderia ser um sinónimo de falta de criativamente foi na verdade uma lufada de ar fresco para entregar uma nova dimensão ao típico protagonista clássico que tem do seu lado a beleza e o poder. Foi despromovê-lo da perfeição ao mesmo tempo que o apresenta como um vencedor, deixando no subtexto uma imagem de esperança na luta contra o bullying. Além disso, Simon ganha algumas características pouco usuais neste tipo de dramas, com um profundo rancor que o consome cegamente e onde se vê que mais do que mágoa, há algo na personalidade dele que o desliga da imagem altruísta que muitos pintam. No entanto, voltando um pouco atrás, no pormenor da gaguez, há uma cena que merece destaque. Que Lady Danbury arrasa em cada frame onde entra, não é surpresa para ninguém, mas há poucas séries que tenham diálogos que poderiam encaixar tão bem em filmes aclamados pela academia quanto o discurso de Lady Danbury com o pequeno Duque, a imagem de superação que cria na nossa mente lembra muito os tempos que Grey’s Anatomy nos tocava para lá do ecrã, é, claramente um regresso de Shonda às suas raízes, e que por lá continue. De volta à versão crescida, que felizmente vem com imperfeições que lhe dão uma maior humanidade, Simon consegue ter uma química instantânea com Daphne mas não só. Ele enche os cenários com a presença, e com o talento, se o amor com Daphne é comprado desde o primeiro instante, não há margem para não dizer que não compramos a relação mãe e filho com Danbury, a amizade com o melhor amigo ou a guerrilha com Anthony, que encontra tantos paralelos na vida real. Este é um daqueles casos em que um bom texto caiu nas mãos de um bom interprete que, nesta primeira season, aparenta estar empenhado em passar longe do rótulo de que é apenas mais um protagonista de um romance.


A química dos pares românticos é um dos grandes trunfos de Bridgerton com Anthony e Siena a darem logo no início o tom e a mostrarem que nem só do casal principal vive este enredo. O casal coadjuvante consegue em poucas cenas conquistar e fazer-nos torcer pelo sucesso de um amor condenado. Mas nos restantes núcleos mantém-se o mesmo fogo, deixando-nos a pedir por mais espaço de antena para o desenrolar da história entre Benedict e Henry, porque há certamente muito para desenvolver naquele contexto e as últimas cenas dos dois só nos deixam ainda mais com a pulga atrás da orelha. Marina e Colin foram o casal mais desajustado, mas compreensível, com o arco da Marina a sobressair como o mais contemporâneo dentro do conto de época e a não acompanhar o mesmo fio condutor do restante elenco. Mesmo assim, a força da personagem fala por si, com temas muito impactantes a serem desenvolvidos nas devidas proporções. Mas se Marina deixa a desejar na hora de se enquadrar no fio condutor de Bridgerton, Pen e Lady Danbury fazer o percurso inverso, assim como Violet que não se fica pelo título de mãe de família e que mostra ter potencial para numa possível segunda temporada ganhar ainda mais nuances. Pen é construída ao milímetro, não só por trazer para o centro da ação uma mulher que foge dos padrões, mas, também, pelo seu jeito intempestivo de quem vive mergulhada nos livros que narram os típicos felizes para sempre. O gosto pela literatura é a nota perfeita para o desfecho da personagem e só torna tudo ainda mais conexo, mas já voltamos a falar disso mais à frente. Lady Danbury depois de entregar diálogos acima da média merece uma menção pelo magnetismo que tem quando surge em cena, numa postura invejável que convence desde o primeiro segundo. Eloíse talvez tenha mais poder nos livros, mas aqui fica-se pela menina detetive que sonha ser diferente, mas que na rebeldia perde a possibilidade de se construir enquanto personagem e surge como o destaque mais pobre ao lado de Pen, Daphne ou até da própria mãe, Violet.

Bridgerton é um acerto, que consegue atingir vários públicos numa história que sendo de época se torna intemporal, fugindo do retrato histórico habitual para desconstruir preconceitos. Ninguém fica defraudado em Bridgerton, nem quem ama um bom romance nem aqueles que não conseguem suprimir a veia de detetive. É possível desfazer o puzzle antes de tempo, mas mesmo assim há algumas questões que ficam em cima da mesa: Como é que Lady Whistledown teve tempo para viver uma temporada tão fervorosa enquanto em simultâneo acompanhava os dramas de tudo e de todos? A próxima season será, de certeza, regada com vários flashbacks que darão um maior enquadramento a esse arco. Contudo, caso não se confirme uma nova sequência de episódios, Bridgerton teve a ousadia de arriscar para garantir aos fãs um final digno, sem deixar muitas questões por responder que pudessem afetar a experiência, mas largando pontas soltas em quase todos os núcleos para garantir que o público fica agarrada a uma possível continuação. Nesta aposta de Shonda Rhimes e da Netflix, temos dois lados muito importantes: A beleza de um guião e dos cenários que nos atraem ao mundo do luxo e que embebedam qualquer um que se deixe encantar pelos clássicos, e o belo que é ver desfeitos certos estigmas, o belo que é ver personagens com representatividade no epicentro de uma história, o belo que é ter atualidade misturada com passado sem que pareça forçado ou fora de contexto e belo que é ver o amor surgir em cada canto sem estarmos à espera. Bridgerton é a surpresa da temporada que encerrou 2020 com chave de ouro para a Netflix, e mesmo com um final bem amarrado mal podemos esperar pela continuação, porque há muito terreno para correr e muitos estereótipos para quebrar.